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Por que é importante garantir a imparcialidade do poder público com a imprensa?

Entrevista de Patricia Abravanel com ministro das Comunicações, que é seu marido, acende discussão sobre isonomia

Foto: Reprodução
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“Se preparem para os novos empregos hein, gente”. Foi com essa frase que a apresentadora Patricia Abravanel, uma das herdeiras do SBT, encerrou a entrevista com o seu marido, o ministro das Comunicações Fabio Faria (PSD-RN), no programa “Vem pra cá”. A transmissão foi ao ar nesta sexta-feira 29 na grade matinal da emissora de Silvio Santos.

Faria foi convocado para falar sobre a tecnologia 5G, cujo leilão irregular acontece na próxima semana e vem sendo questionado por entidades da sociedade civil. “O 5G vai chegar para mudar a vida dos brasileiros e mudar a vida das indústrias. Vai conectar todo o setor produtivo, como por exemplo o agronegócio. Nós temos estudos que dizem que o agronegócio irá crescer de 10% a 20% do PIB. O 5G irá levar conexão para todos os lugares do país, além do agronegócio, mineração, educação, internet das coisas, telemedicina, cirurgia a distância, entre outros”, disse na entrevista, desconsiderando o abismo digital existente no Brasil. Em resposta, Abravanel destaca que “o que interessa para o povo é o emprego” e diz que o 5G permitirá a instalação de grandes empresas no país, gerando novos empregos.

Essa flagrante defesa da agenda do governo Bolsonaro não é novidade no SBT. Enquanto para grande parte da mídia o cenário é de hostilidade, com aqueles veículos que deliberadamente apoiam o governo Bolsonaro a relação tende a ser outra. Divulgação de programas de governo, participações especiais em programas de TV e anúncios de políticas públicas feitos de maneira exclusiva a determinados veículos são uma prática constante no atual governo.

Em 2019, Bolsonaro concedeu entrevista a programas do SBT sobre o seu programa de governo. No Programa do Ratinho, o presidente se dispôs a falar de temas como porte de armas, mudanças na aposentadoria, comunismo, segurança pública e o atentado que sofreu enquanto candidato. O assunto principal da participação no programa foi a defesa da Reforma da Previdência, que estava em deliberação à época. Segundo a Veja, o governo havia reservado 6,8 milhões de reais para investir em propagandas sobre a reforma e, deste total, 268.500 mil foram pagos ao Ratinho por essa entrevista.

O apresentador Ratinho, na ocasião, endossou veementemente a opinião do presidente em frases como: “eu sou apaixonado pelo general Floriano”, ou “vocês acham que se a reforma da Previdência fosse ruim eu a defenderia?”.

Em outra ocasião, Bolsonaro chegou até mesmo a fechar a agenda apenas para conceder entrevista ao Ratinho, desta vez em Brasília. O apresentador e empresário das comunicações disse em vídeo que a entrevista seria feita de forma exclusiva: “Vamos entrevistar o presidente Bolsonaro, fazer as perguntas que o povo quer que a gente faça. Vamos falar com exclusividade, ele não vai falar para toda imprensa, é para o nosso programa mesmo. As perguntas que o povo gosta.”

Silvio Santos, dono do SBT, emissora da qual o Programa do Ratinho faz parte, já chegou a afirmar que Bolsonaro é seu “patrão”, quando o recebeu em sua casa no final de 2020. Na ocasião, ele citou que a concessão de televisão pertencia ao governo e ele jamais se colocaria contra uma decisão de seu patrão, já que ele como “empregado” não deveria ficar contra a decisão de seu chefe.

Violência contra jornalistas explode

Desde os primeiros dias do governo Bolsonaro ficou evidente que a relação com a imprensa seria conflituosa. Já em sua cerimônia de posse, foram estabelecidas regras inéditas e rígidas aos jornalistas que foram cobrir o evento, impedindo uma cobertura completa e criando um cenário de dificuldade e hostilidade aos profissionais presentes.

Ao longo de seu mandato, o tratamento desrespeitoso e até agressivo dirigido à imprensa se manteve. Desde ataques a profissionais até dificuldades no acesso a informações pertinentes à sociedade, não faltam exemplos de comportamento inadequado do chefe do Executivo para com jornalistas.

De acordo com a ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF), em levantamento realizado em 2020, Bolsonaro e seus filhos já haviam realizado 469 ataques a jornalistas e veículos de imprensa. Além disso, a ONG apurou que o Brasil ocupava o 107º lugar no ranking mundial de liberdade de imprensa, caindo duas posições em relação a 2019. Vale ressaltar que, em relação à 2019, a violência e ocorrência de ataques contra jornalistas já havia crescido 105,77%, como apontado pelo Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil – 2020, elaborado pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ).

Este índice continuou crescendo e, em julho de 2021, em novo levantamento apurado pela RSF, foi apontado um crescimento de 74% no número de ataques à imprensa quando comparado a 2020. Os números levaram Bolsonaro à lista de ‘Predadores da Liberdade de Imprensa’.

A hostilidade dirigida à imprensa é presente também em um espaço construído teoricamente para coletivas de imprensa e divulgação de informações. O cercadinho, localizado na saída do Palácio da Alvorada, se tornou palco para violências e agressões dirigidas aos profissionais de imprensa. A concentração de apoiadores, a falta de segurança e o comportamento de Bolsonaro transformaram um espaço destinado à divulgação de informações em um espaço hostil aos jornalistas.

A situação tornou-se tão complexa que, em determinado momento, veículos como a Folha de S.Paulo e Grupo Globo decidiram não enviar mais repórteres ao cercadinho, decisão seguida por Band, Correio Braziliense e Metrópoles. A decisão foi motivada pelo ambiente de insegurança, ataques e hostilidades direcionados aos jornalistas pelos apoiadores de Bolsonaro, atitude endossada pelo próprio.

No entanto, a preocupação com esse tipo de questão não é a prioridade do governo. Augusto Heleno, ministro do Gabinete Institucional, ao convocar a imprensa para explanar acerca das medidas de segurança direcionadas aos jornalistas, afirmou que medidas de segurança deveriam ser tomadas apenas em casos de agressão física e que, no caso de ofensas verbais dirigidas pelos manifestantes, os profissionais deveriam “fingir que não ouviram”.

Isonomia

Atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 542/2019 tem atraído pouca atenção, mas trata de um tema de extrema importância para a democracia em um mundo midiatizado como o que vivemos. No governo Bolsonaro ficou evidente os riscos de um governante priorizar a atenção a determinados veículos como forma de apoiar aqueles que lhe são mais favoráveis e o impacto, em censura indireta, da impossibilidade de determinados veículos e profissionais de imprensa acessarem informações do poder público em tempo adequado para o modelo de circulação de notícias atual.

O PL em questão, pendente de relator e análise na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, dispõe acerca da garantia de isonomia a veículos de imprensa, no que se refere à participação em entrevistas coletivas concedidas pelos representantes dos Poderes da República, Órgãos Públicos ou de Instituições Públicas. O texto compreende empresas de comunicação, jornais, televisão, rádio ou mídia virtual e sua aprovação é necessária para a garantia da liberdade de imprensa e, consequentemente, para uma democracia real.

Como apontado pela deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), que relatou favoravelmente o projeto na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), onde foi aprovado, a matéria apresenta extrema relevância, especialmente no contexto atual em que setores do governo e do Poder Público se relacionam de forma problemática com os veículos de imprensa e jornalistas e buscam, por vezes, impedir uma cobertura jornalística isonômica e equilibrada.

Ao exigir a isonomia na participação em entrevistas coletivas concedidas pelos mandatários, o PL cobriria uma parte dos problemas. Porém, não é explícito quanto ao privilégio de determinados veículos no acesso a informações, algo que afeta a audiência dos veículos e interfere em sua capacidade de obter receitas, além de limitar a capacidade de crítica e questionamento por meio dos meios de comunicação.

A oferta de informação exclusiva a determinados veículos quanto a anúncios de programas e projetos deve ser evitada, sob a justificativa de risco de censura indireta do mandatário. Este ponto vale destaque ante os fatos de favorecimento de determinados veículos – alinhados com o governo – visível no último período.

Ainda quanto à isonomia, é preciso atentar para o bloqueio de jornalistas em perfis de chefes de governo e perfis governamentais nas redes sociais, o que limita o acesso destes às informações de interesse público. De acordo com relatório publicado pela Associação Brasileira de Defesa do Jornalismo Investigativo (Abraji), autoridades públicas do governo seguem bloqueando jornalistas e impedindo que esses acompanhem informações públicas divulgadas em redes sociais. A tentativa de impedir acesso a perfil de uma autoridade pública ou de órgão público também vai contra a isonomia e poderia ser endereçado pela proposta de autoria de Maria do Rosário.

Futuro do projeto

Da forma como está, o PL 542/19 já é importante para amenizar algumas problemáticas percebidas neste governo, ainda que possa melhorar para incluir a prioridade às coletivas de imprensa e a proibição da tentativa de impedir o acesso de cidadãos a perfis oficiais de órgãos de Estado e autoridades públicas. O texto estabelece a obediência por parte das autoridades aos princípios da impessoalidade, da imparcialidade e da não discriminação quando oferecida informação pública, assim como as sanções cabíveis.

Como apontado em sua justificativa pela autora do projeto, a deputada Maria do Rosário (PT-RS), a liberdade de imprensa é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal e é a partir dela que os poderes podem ser fiscalizados e cobrados e que a população consegue se manter informada, inclusive pela formulação de críticas.

A tarefa a qual o projeto se propõe não é fácil e o estabelecimento de regras em relação ao tema é complexo. A concessão de entrevistas exclusivas e a propaganda de governo em si não são proibidas e deve existir alguma flexibilidade. No entanto, a problemática advém principalmente da priorização de certos veículos de comunicação em detrimento de outros, da limitação do acesso à informação pelos jornalistas e, consequentemente, da divulgação dessas informações através de propagandas, veículos pagos pelo governo e apoiadores, apresentando apenas uma faceta da notícia.

A proposta está desde a segunda semana de setembro na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, aguardando a designação de relatoria e, posteriormente, sua deliberação. É necessária a retomada dos debates em torno deste projeto que tramita desde 2019 para que entre em vigor e contribua para uma imprensa livre e democrática.

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