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O papel da mídia brasileira na consolidação da Necropolítica

Discursos racistas e a banalização da violência são reverberados diariamente pela mídia. Em parte, financiados pelo próprio Estado

Racismo no Brasil. Foto: EBC
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Por Paulo Victor Melo

  • Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios no Brasil foram pessoas negras;
  • Naquele ano, a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, enquanto o índice de não-negros foi de 16,0;
  • Considerando o percentual populacional, para cada indivíduo não-negro que sofreu homicídio no ano da pesquisa, 2,7 negros, em média, foram mortos;
  • No período de uma década, entre 2007 e 2017, a taxa de negros assassinados cresceu 33,1%, enquanto a de não-negros cresceu 3,3%;
  • Em comparação com o ano anterior, em 2017 houve uma redução de 0,3% no homicídio de não-negros, enquanto o de negros cresceu 7,2%.

Os dados acima, divulgados na mais recente versão do Atlas da Violência, estudo elaborado pelo IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em junho deste ano,  confirmam ser o Brasil um local emblemático do que o filósofo e cientista social camaronês Achille Mbembe conceituou como Necropolítica, definida, em termos gerais, como a política centrada na produção da morte em larga escala, que determina quais sujeitos devem morrer e quais tem o direito à vida.

Além dos números que evidenciam a ação de extermínio da população negra, a Necropolítica brasileira é agravada com declarações e gestos de agentes do Estado que legitimam a ideia de que, sim, há corpos matáveis e vidas com menos valor, sendo, portanto, descartáveis. Declarações do atual presidente da República sobre povos tradicionais, como as comunidades quilombolas; comemorações do governador do Rio de Janeiro com a ação de atiradores de elite sobre a juventude negra dos morros e favelas; e silêncios cotidianos do ministro da Justiça e Segurança Pública sobre assassinatos de crianças negras que iam ou voltavam da escola são alguns dos exemplos da institucionalização do racismo e da barbárie.

 

Mas para se consolidar enquanto ação estatal, como no caso do Brasil, a Necropolítica necessita também da sustentação de um discurso público – para além do dito por agentes políticos – que naturalize o racismo e banalize o ódio e a violência. E, nesse sentido, cabe discutir aqui o papel dos meios de comunicação privado-comerciais.

Policialescos: o braço midiático da Necropolítica

No que diz respeito à televisão e ao rádio, uma das narrativas principais de difusão dos discursos racistas e de legitimação do direito à morte são os programas policialescos, a exemplo do Cidade Alerta (Record), Balanço Geral (Record) e Brasil Urgente (Band), que, além das edições nacionais que alcançam as diferentes regiões do país, possuem versões locais em emissoras afiliadas nos diversos estados.

Tendo como estratégias a superexposição da violência e a defesa da repressão e do punitivismo como caminho único para resolução dos problemas sociais, esses programas dão espaço a manifestações, ao vivo, em rede nacional, de aplausos e comemorações a perseguições policiais que culminam em tiros contra suspeitos, sem mesmo que se diga quais supostos crimes foram cometidos, atos de “justiçamento” como resposta dos “cidadãos de bem” e assassinatos cometidos por agentes do Estado. Em outras palavras, os programas policialescos funcionam como instrumentos de autorização da Necropolítica.

Realizada pela ANDI – Comunicação e Direitos, em parceria com o Intervozes, Artigo 19 e Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, a pesquisa “Violações de direitos na mídia brasileira”, que monitorou 28 programas policialescos de rádio e TV, em 2015, identificou 1.928 narrativas com violações de um ou mais direitos, como: exposição indevida de pessoas vítimas de violência ou suspeitas de haver cometido um crime;  desrespeito à presunção de inocência; violação do direito ao silêncio; exposição indevida de familiares de vítimas ou suspeitos; incitação à desobediência às leis ou às decisões judiciárias; incitação ao crime e à violência; identificação de adolescente em conflito com a lei; discurso de ódio ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação sexual ou procedência nacional; e tortura psicológica e/ou tratamento desumano ou degradante.

O estudo revelou também que, assim como funciona com a Necropolítica, a população negra é alvo prioritário das violências cometidas pelos meios de comunicação, afinal, mais de 60% das personagens que tiveram direitos violados pelos programas policialescos analisados, sejam como suspeitos ou vítimas de atos violentos, são negros.

De forma complementar, as narrativas quase que não apresentam caminhos para a reversão da problemática da violência e, quando o fazem, focam em medidas como punições mais severas, alterações na legislação, visando mais punitivismo, aumento do efetivo policial e redução da idade penal. Medidas que apenas tendem a reforçar a ação do Estado de determinação sobre corpos matáveis.

Juntos, mídia e Estado concretizam a política da morte

A realização da mídia enquanto um sustentáculo da Necropolítica ocorre também através do incentivo do próprio Estado. Sobre isso, vale citar dados da pesquisa “A publicidade como estratégia de financiamento de programas policialescos”, elaborada em 2016 pela ANDI e Instituto Alana, que avaliou 8.552 publicidades exibidas em 20 programas de rádio e TV durante quatro semanas. De acordo com a pesquisa:

– 8,3% das cotas de patrocínio (vinhetas apresentadas no início ou final do programa, como “oferecimento” são de empresas públicas ou de economia mista e 0,5% de órgãos estatais (Executivo, Legislativo ou Judiciário);

Sobre merchandising (exposição de produtos, marcas ou serviços dentro da programação) e anúncios veiculados nos intervalos dos programas, 5,7% são de órgãos estatais e 2,1% de empresas estatais ou de economia mista.

Ainda que a maior parte dos anúncios dos programas policialescos seja de grupos privados, os números da referida pesquisa ilustram a existência de uma forte articulação e dependência entre mídia e Estado na concretização da Necropolítica.

Outro indicador dessa interdependência é a participação de protagonistas dos programas policialescos nos processos eleitorais. Levantamento realizado pelo Intervozes em 10 estados do país (Bahia, Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo) e no Distrito Federal demonstrou que 23 apresentadores e repórteres desse tipo de programa disputaram cargos legislativos (Assembleias Legislativas, Câmara dos Deputados e Senado) em outubro do ano passado, sendo que nove foram eleitos.

Assim, com os programas policialescos atuando como difusores e legitimadores da política institucional que determina quem deve morrer e quem deve viver, com o Estado sustentando financeiramente essas narrativas e com a utilização do espaço midiático como trampolim político para apresentadores, repórteres e comentaristas desses programas, não restam dúvidas: a mídia brasileira é um eixo fundamental da Necropolítica de que nos fala Mbembe.

Paulo Victor Melo é jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, professor de Comunicação e integrante do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação.

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