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Barbárie na TV: a mídia tem responsabilidade na banalização do ódio

Desconstruir a barbárie passa por um outro tipo de comunicação, baseada no respeito aos direitos humanos e na negação do ódio

Wilson Witzel, comemorando a execução por "sniper" de um homem que, com uma arma de brinquedo, mantinha pessoas como refém
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Quando vemos um homem, que tem como dever cuidar de um estado e das pessoas que nele vivem, comemorar euforicamente uma execução, como fosse título de um campeonato do seu time, é a confirmação de que vivemos uma situação de barbárie.

Causa profunda dor reconhecer isso, mas os vídeos e fotos do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, descendo do helicóptero no meio da ponte Rio-Niterói e vibrando com a morte de um homem que havia sequestrado um ônibus com quase 40 pessoas na manhã dessa terça-feira 20 é talvez o quadro mais representativo do Brasil atual.

Se, é verdade, nunca fomos um país cordial – basta verificarmos como o racismo e a misoginia, por exemplo, sempre encontraram terreno fértil em solo brasileiro – temos, nos últimos anos, aprofundado as nossas desigualdades estruturais e dado passos largos naquilo que a filósofa Hannah Arendt qualificou como “banalidade do mal”.

Os gestos de Witzel, acompanhados por suas declarações posteriores e por manifestações de Jair Bolsonaro, além das legitimações e concordâncias que inundaram as redes sociais, são a expressão máxima da banalização do ódio. A barbárie conduz a coletividade a não só aceitar passiva e progressivamente as manifestações de ódio, mas também participar dos seus mecanismos reproduzindo-os.

Não importa que Willian Augusto da Silva não tenha machucado fisicamente nenhum passageiro. Não importa que ele tenha decidido se entregar. Não importa o fato de uma das armas, a única que seria de fogo, ser de brinquedo. Não importam os relatos dos passageiros de que diversas vezes Willian afirmou não querer machucar ninguém. Não importa o fato de Willian ter liberado alguns reféns à medida em que negociava com policiais rodoviários e com o Batalhão de Choque. Não importa a conclusão de psicólogos que participaram da negociação sobre o perfil instável de Willian. O que importa mesmo é celebrar o sucesso das seis perfurações no corpo de Willian, de 20 anos.

A imagem de um homem branco, chefe de estado, celebrando a morte na Rio-Niterói é apenas uma fotografia do Brasil atual. A imagem remete a outra, ocorrida há exatos quatro anos, quando, em 19 de agosto de 2015, vários parlamentares celebraram em gestos parecidos com o de Witzel a aprovação, pela Câmara dos Deputados, de uma Proposta de Emenda à Constituição que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos.

Esse estado de banalização da violência e do ódio não teria sustentação sem a reverberação diária de vozes que têm espaço na mídia brasileira e sem a construção de uma narrativa que se sustenta no sensacionalismo, na desinformação e lucra com a dor e a miséria humanas.

Como pensar em Witzel e não lembrar, por exemplo, do apoio da jornalista Rachel Sheherazade, então apresentadora de um telejornal no SBT, ao ato de tortura contra um adolescente de 15 anos, que foi amarrado a um poste, teve suas roupas arrancadas e uma orelha cortada por um grupo de rapazes que ele, supostamente, havia tentado assaltar? As palavras de Sheherazade, em rede nacional de televisão, em 2014, foram as seguintes: “A atitude dos vingadores é até compreensível. O estado é omisso; a polícia, desmoralizada; a justiça é falha. O que resta ao cidadão de bem, que ainda por cima foi desarmado? Se defender, é claro. O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite”.

Como pensar em Witzel e não lembrar do caso da Band Bahia, em maio de 2013, em que a jornalista Mirella Cunha insistentemente chamou um jovem negro de estuprador, quando ele afirmava repetidas vezes que não havia tentado estuprar ninguém? A jornalista, também em rede aberta de televisão, disse mais de uma vez: “Paulo Sérgio estuprador! Não estuprou, mas queria estuprar!”.

Como pensar em Witzel e não lembrar do programa Cidade 190, da TV Cidade, de Fortaleza, que durante quase 20 minutos veiculou cenas do estupro de uma menina de 9 anos de idade, em 2014?

Como pensar em Witzel e não lembrar que em 2015 a Band e a Record exibiram, ao vivo, por meio de filmagem em helicópteros, um policial militar atirando em duas pessoas após perseguição policial de moto na cidade de São Paulo?

Na Band, as palavras de José Luiz Datena, ao vivo, para todo o Brasil, foram: “A polícia vem atrás, em velocidade atrás dos marginais. Que coisa incrível isso aí! Que imagem! Que imagem impressionante”. Já na Record, Marcelo Rezende, igualmente empolgado, disparou: “o homem da Rocam já pega no revólver, não sei se ele atirou. Parece que ele atirou. Porque se ele atirou, é porque o bandido tava armado. E ele fez muito bem, porque ele tem que defender a vida dele”.

Como pensar em Witzel e não lembrar das dezenas de programas policialescos que ocupam a programação da TV brasileira, em quase todos os estados do país, especialmente no horário do almoço, quando famílias, crianças e adolescentes estão em contato com a mídia?

Vale destacar que, para além dos apresentadores ou comentaristas em si, o problema é mais grave: é parte da estrutura, da lógica de funcionamento, dos meios de comunicação no Brasil, em que crimes e violência são incitados, direito à presunção de inocência é desrespeitado, pessoas e famílias são expostas indevidamente, tratamentos desumanos e degradantes são cometidos, legislações protetivas de direitos são ignoradas e discursos de ódio são proferidos.

Todos esses casos são exemplares das estratégias midiáticas, referenciadas numa matriz melodramática, de exploração da dor e exposição da barbárie como instrumento de mobilização das audiências. E neste ponto é preciso perguntar: quem lucra com a exploração da violência e com a violação de direitos na mídia? E mais: quem se beneficia da audiência destes programas e financia a barbárie midiática de todos os dias?

Foto: Tânia Rego/EBR

Em junho último, quatro organizações da sociedade civil (Intervozes, Andi, Artigo 19 e Instituto Alana) entregaram à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal uma representação pedindo providências contra órgãos do poder público que anunciam nos programas policialescos. O documento está baseado na pesquisa “A publicidade como estratégia de financiamento dos programas policialescos”, que monitorou 20 programas, em 10 estados da federação, durante três semanas, analisando as cotas de patrocínio, de merchandising e os anúncios veiculados nos intervalos comerciais.

Não há dúvidas, não apenas vivemos um estado de barbárie, mas vivemos uma barbárie que se tornou espetáculo midiático, transmitido ao vivo, em rede nacional.

Sintomático disso foi o desejo manifestado por Willian, relatado por passageiros em reportagem da Folha de S. Paulo, de “repetir o sequestro do ônibus 174 e entrar para a história”. “Willian só falava que queria entrar para a história, que a gente ia ter muita história para contar. Só falava disso”, disse Hanz Miller, um dos passageiros.

Não é, portanto, de causar espanto que Willian tenha feito referência a um episódio ocorrido há 19 anos, quando ele tinha apenas um ano de vida? Assim como o caso dessa terça-feira 20, o sequestro do ônibus que faz a linha 174 também foi transmitido ao vivo em rede nacional, pela Record e Globo, por aproximadamente quatro horas.

Do mesmo modo ocorreu no sequestro da jovem Eloá Cristina, pelo então namorado Lindemberg Fernandes, em 2008, que chegou a conceder inúmeras entrevistas para programas de TV enquanto mantinha a vítima em cárcere. À época, os negociadores chegaram a relatar que tiveram dificuldade de contatar o sequestrador porque seu celular estava constantemente ocupado por conta do assédio midiático.

Construir o caminho de desconstrução da barbárie televisionada é uma tarefa urgente e difícil, mas passa fundamentalmente por um outro tipo de comunicação, baseada no respeito aos direitos humanos e na negação do ódio.

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