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O Brasil que pouco se mostra por aqui exibe outros lados lá fora

Há 15 anos o Festival Brasil em Movimentos tem levado para a França filmes documentários e debates que mostram outros ‘Brasis’

(Foto: divulgação / Autres Brésils)
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Por Beatriz Rodovalho*

Que imagens do Brasil circulam na Europa? Estas imagens são produzidas por quem? Como desfazer o olhar do “velho mundo”, eurocêntrico e hegemônico, que se coloca sobre a América Latina? Como construir espaços para outros olhares e outras vozes do Brasil pelo mundo? Para ajudar a responder a essas e outras questões, há 15 anos o Festival Brésil en Mouvements (Brasil em Movimentos) tem levado para a França filmes documentários e debates que mostram outros “Brasis” que pouca ou nenhuma visibilidade têm na chamada mídia tradicional nacional.

Em sua edição de 2019, realizada em setembro em Paris, nove meses após a eleição de um presidente de extrema direita, a palavra de ordem do festival foi: “ocupar e resistir”. O filme escolhido para a abertura foi Chão, de Camila Freitas, que se imerge no combate do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O de encerramento foi Torre das Donzelas, de Susanna Lira, que recupera a memória das antigas prisioneiras políticas da ditadura, entre elas, Dilma Rousseff. O próprio cinema, instrumento de construção da luta social e de imaginação de um mundo possível, foi defendido como território a se ocupar.

Mas não só. Como propôs Célia Xakriabá, líder da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), uma das convidadas do evento, não basta ocupar as telas e as terras. É preciso indigenizá-las. Na França, Célia Xakriabá representou a luta das mulheres indígenas que estão na linha de frente contra o governo Bolsonaro. Segundo a líder, elas não têm opção: ou vão à luta ou a luta vem até elas. Além de denunciar o “genocídio legislado” dos povos indígenas no Brasil – feito a base de medidas legalizadas, como o uso dos agrotóxicos – e de defender a demarcação dos territórios, Célia Xakriabá criticou o projeto de ecocídio que ameaça o planeta.

Foto: divulgação / Autres Brésils

A resistência e a potência dos povos indígenas foram vistas nos filmes Quentura, de Mari Corrêa; Os Donos da Floresta em Perigo, de Flay Guajajara, Edivan Guajajara e Erisvan Bone Guajajara; Bimi Shu Ikaya, de Isaka Huni Kuin, Siã Huni Kuin e Zezinho Yube; e Tekohá, de Rodrigo Arajeju e Valdenice Veron.

E se a terra é a “mãe de todas as lutas”, a luta social também é protagonizada por mães brasileiras. Marinete da Silva, advogada, mãe de Marielle Franco, e Nivia Raposo, da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense, estiveram no festival para denunciar a violência policial e de Estado contra a população pobre e negra. Nivia Raposo, protagonista do filme Nossos Mortos Têm Voz (de Fernando Sousa e Gabriel Barbosa), falou da transformação permanente do luto em luta.

Marinete da Silva, colocando a pergunta que permanece sem resposta – quem mandou matar Marielle? –, discutiu como, mais do que representar diversas comunidades marginalizadas, o trabalho de sua filha denunciava a política de segurança pública do Rio de Janeiro. À luz do filme Auto de Resistência (de Natasha Neri e Lula Carvalho), Marinete mostrou que este é um trabalho cada vez mais importante diante do endurecimento da repressão pelo governo do Rio, da impunidade dos agentes e da banalização do armamento.

Marinete da Silva dividiu o debate com Assa Traoré, irmã de Adama Traoré, jovem negro da periferia parisiense, assassinado pela polícia francesa em 2016. Depois de todos os seus irmãos terem sido presos por sua ação política, hoje Assa é vítima de quatro acusações, feita pelos policiais que ela aponta como responsáveis pelo assassinato do irmão.

Vozes femininas no foco

O festival promoveu, assim, dentro e fora da tela, vozes de mulheres que carregam nos corpos o signo da violência e a força dos movimentos sociais brasileiros. A maioria dos filmes selecionados tinha protagonistas femininas (mulheres indígenas, camponesas, sem-teto, estudantes, quilombolas, lésbicas, mães) e foi dirigida ou co-dirigida por mulheres (além das já citadas, também Alice Riff, Amaranta César, Fabiana Assis, Aude Chevalier-Beaumel, Victoria Alvares, Nadia Mangolini e Marina Pontes).

Indianara (de Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa), que ganhou o prêmio do público, faz um retrato da luta das mulheres trans por meio de uma de suas líderes, Indianara Siqueira, e de seu trabalho na ocupação Casa Nem, no centro do Rio de Janeiro. Já o filme que recebeu menção especial, Parque Oeste (de Fabiana Assis, apresentado em parceria com a Mostra de Cinema de Tiradentes), documenta parte da trajetória de Eronilde Nascimento, que luta pelo direito à ocupação e à moradia em Goiânia. A história de Eronilde cruza a de Dona Marinete e a de Nivia: ela é fundadora do Comitê Goiano Pelo Fim da Violência Policial e do movimento Mães de Maio do Cerrado. Uma expulsão violenta da ocupação do Parque Oeste em 2015, da qual o filme recupera imagens, matou seu companheiro.

Foto: divulgação / Autres Brésils

Dar voz a essas mulheres e difundir suas imagens estão entre os objetivos do Festival Brasil em Movimentos e da associação Autres Brésils, que o organiza. Outro é garantir a distribuição do audiovisual brasileiro fora do circuito tradicional. Diante dos ataques aos mecanismos públicos de produção, preservação e distribuição do cinema nacional, assim como a sua liberdade e diversidade, pode-se perguntar que Brasis esse e outros festivais na Europa passarão a mostrar.

Algumas imagens do passado atravessam essa interrogação – imagens-fantasmas, como as do trabalho de um nome que não pode deixar de ser invocado quando se trata de documentário na França: o de Chris Marker. Por meio da série de reportagens On vous parle du Brésil (1969, 1970), Marker trouxe, via Cuba, histórias até então não contadas da ditadura no Brasil. Do trabalho do cineasta, guardamos sobretudo o gesto: produzir contrainformação e fazê-la circular.

É hora de colocar em movimento, apesar de tudo, as imagens e as vozes dos Brasis que se tentam apagar. Como lembram Aude Chevalier-Beaumel e Quentin Delaroche, diretora e montador de Indianara, agora, mais do que nunca, têm-se vontade e necessidade de filmar. Avante.

*Beatriz Rodovalho é doutora em Cinema e integra a associação Autres Brésils na França

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