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Mulheres ainda são desafiadas por ambientes sexistas

Casos de assédio contra repórteres, artistas, publicitárias e demais comunicadoras têm gerado denúncia, resistência e conscientização

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“E La Loba ainda canta, com tanta intensidade que o chão do deserto estremece, e enquanto canta o lobo abre os olhos, dá um salto e sai correndo pelo desfiladeiro. Em algum ponto da corrida, quer pela velocidade, por atravessar rio respingando água, quer pela incidência de um raio de sol ou de um luar sobre o seu flanco, o lobo de repente é transformado numa mulher que ri e corre livre na direção do horizonte” (ESTÉS, 2014, 42).

No livro Mulheres que correm com os lobos, lançado originalmente em 1992, Clarissa Pinkola Estés, acadêmica, poetisa e cantadora, busca, através da análise junguiana de mitos e histórias da Mulher Selvagem, apontar caminhos para a cura da alma feminina. Imaginem até onde nós mulheres poderíamos chegar se não tivéssemos nossa criatividade e nossa autonomia desmatados como as florestas. Ser uma mulher que ri e corre livremente, segura de sua capacidade, exercendo ao máximo suas potencialidades, sabemos, só é possível sem as amarras do machismo.

Nesse 8 de março, lembramos que ambientes livres de assédio (também na militância), são fundamentais para o exercício autônomo e criativo do trabalho das mulheres. Mulheres que criam arte, produzem informação e outros bens simbólicos são cotidianamente desafiadas por ambientes sexistas. Mas, ao contrário do silêncio imobilizante ao qual a estrutura machista nos deseja ver submetidas, temos gritado, gritado juntas e nos articulado. Há tempos, de forma silenciosa, nos cochichos de quintal ou alcova, ou nas ruas, percebemos que ganhamos força e avançamos quando juntas.

A internet também vem sendo um lugar de reverberação das nossas pautas e campanhas, a despeito do discurso de ódio e das ameaças que mulheres que ousam falar sofrem também nesse espaço. Em 13 anos, a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos recebeu e processou 17.678 denúncias anônimas de Violência ou Discriminação contra Mulheres envolvendo 4.011 páginas distintas (das quais 1.041 foram removidas).

Provavelmente nada disso é novidade para quem nos lê. Mas ainda impressiona a muitas de nós, que temos arrancado conquistas recentes a custo de muita luta e dor, que ainda tenhamos que batalhar para não violarem nossos corpos e nossos desejos nos ambientes de trabalho e outros espaços público-privados.

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Em março do ano passado, mais de 50 repórteres esportivas lançaram o manifesto e a campanha #DeixaElaTrabalhar, como reação ao assédio sofrido por jornalistas enquanto fazem cobertura de esporte. Mas o assédio contra jornalistas não se resume a esses casos. Em 2016, como resposta à demissão de uma repórter do iG ao denunciar assédio sofrido pelo cantor Biel quando o entrevistava, foi criado o movimento #JornalistasContraOAssédio.

Nos próximos dias, o Coletivo de Mulheres Jornalistas do Distrito Federal vai publicar os resultados de levantamento de casos de assédio contra profissionais da imprensa no DF. O Coletivo já nos adiantou um dos dados: mais de 70% das profissionais entrevistadas afirmaram já ter sofrido assédio sexual. A gravidade do ambiente de assédio contra jornalistas levou a Unesco a anunciar, em fevereiro deste ano, que vai organizar um estudo para colaborar com o combate ao assédio online cometido contra estas profissionais.

Na publicidade, a situação não é melhor. O Grupo de Planejamento publicou, em 2017, resultado da pesquisa “Hostilidade, silêncio e omissão: o retrato do assédio no mercado de comunicação de São Paulo”, em que foram entrevistados 1.400 profissionais de agências, produtoras e veículos de comunicação. Entre as mulheres, 90% afirmaram já ter sido vítimas de assédio moral ou sexual. A pesquisa provocou agências a organizarem ações de combate a esse tipo de violência.

Internacionalmente, acompanhamos a campanha #MeToo, que denunciou o assédio sofrido contra mulheres na indústria de cinema hollywoodiana. Embora a relação não seja automática, até porque o fato de ser mulher não significa necessariamente uma aderência aos valores feministas, The Representation Project, que pesquisa e produz conteúdo sobre representação de mulheres e outras minorias na mídia dos Estados Unidos, aponta que uma das causas da má representação midiática é a pequena quantidade dessas minorias em funções reconhecidamente importantes na cadeia do audiovisual e nos espaços de legitimação das produções.

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Segundo The Representation Project, desde 2015, quando foi lançada a campanha #OscarsSoWhite, a Academia adicionou mais de 1.500 novos jurados (um aumento de quase 30%), tendo como meta ampliar a diversidade de votantes e de premiados. Ainda de acordo com o Projeto, iniciativas como 4% Challenge (“Desafio dos 4%”) já começam a dar resultados com a adesão de grandes estúdios como Amazon, Universal, MGM e Paramount. A ação busca reverter o dado de que as mulheres dirigiram apenas 4% dos filmes de maior bilheteria da última década.

A filósofa Djamila Ribeiro nos lembra que “as experiências desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e não humanizada [as chamadas “minorias”] faz com que as produções intelectuais, saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado, além das condições sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente” (2017, p. 63). Por isso, comemoramos a produção feminista de conteúdo, seja de forma independente na internet, seja através do espaço cavado na imprensa tradicional ou do reconhecimento por espaços autorizados, como os júris de prêmios internacionais.

Não à toa, a despeito de tudo que ainda precisamos conquistar, The Representation Project, em seu blog, anunciou com otimismo o resultado do Oscar e do Emmy deste ano: “Diversidade e inclusão vencem o Oscar 2019” e “Mulheres arrasaram no Grammy 2019” (em tradução livre).Celebramos as mulheres artistas e seu reconhecimento, como a vitória da escola de samba carioca Mangueira, cujo samba-enredo deste ano teve uma mulher como compositora. Por isso, ousamos ocupar a internet (e todos os outros espaços possíveis) para que as violências do mundo offline sejam denunciadas, como através da campanha #ativismonaweb, pelo fim das violência contra mulheres e meninas.

As possibilidades de criação e de denúncias são também diferentes entre as mulheres. Aprendemos com o feminismo negro que as mulheres brancas (entre as quais me incluo) têm mais espaço de escuta do que as negras, que sofrem outros tipos de violência com base em estereótipos que não atingem as brancas.  A violência médica, baseada na ideia de que seriam mais fortes e tolerantes à dor que as brancas é um exemplo. A invisibilidade das companheiras negras na mídia e a dificuldade que as mulheres negras têm de se constituirem como liderança, seja na pesquisa acadêmica, no mercado de trabalho ou no ativismo, são outros exemplos.

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Reconhecer para transformar

O reconhecimento do machismo e dos desafios que ele nos impõe cotidianamente é um passo importante para que possamos mudar os espaços onde atuamos, seja profissional ou militantemente. Não é uma tarefa fácil visto que estamos em uma posição de onde é possível ver – de perto e dolorosamente – que os espaços de ativismo e militância, que combatem a desigualdade de gênero, não estão imunes ao machismo.

Estamos aqui falando então de um ponto de vista específico. Somos mulheres (brancas e negras, embora essas ainda sejam poucas no coletivo Intervozes) intelectualizadas, que participamos de movimentos políticos e que, portanto, temos mais condições de não nos submeter aos silêncios impostos. Mas ainda assim, sabemos, não é tarefa fácil.

No final de 2015, reverberamos junto com milhares de outras mulheres,  a campanha #MeuAmigoSecreto, trazendo a público que também somos vítimas de assédio e outras formas de machismo cometidos por nossos amigos, amores e companheiros de luta. O que, por mais que pareça contraditório, é compreensível quando nos lembramos que o machismo, a LGBTIfobia, o patriarcado e o racismo são estruturantes da nossa sociedade.

Compreensível, porém, não significa aceitável. Nós, mulheres do Intervozes, um coletivo misto, sofremos também por essa desigualdade no nosso ambiente de militância. Entendemos a necessidade de auto-organização num espaço próprio, e é o que fazemos no nosso Setorial de Mulheres. Entendemos também a necessidade de trabalho coletivo com nossos companheiros, para que reflitam sobre seu papel de opressores e sobre a chamada “masculinidade tóxica”, como tem sido feito por iniciativas de ONU Mulheres e The Representation Project.

Na tentativa de construir um ambiente mais seguro para nós e demais militantes que sofram assédio de nossos companheiros de coletivo, lançamos hoje nosso Levante Sua Voz Contra o Assédio Sexual, resultado de reflexões e debates coletivos. É um passo que está longe de resolver esse tipo de problema, mas – estamos confiantes – um passo fundamental para isso. Seguindo a trilha da autora Gloria Anzaldúa, que diz que escreve porque tem medo de escrever, mas tem um medo maior de não escrever, temos medo de denunciar, mas temos um medo maior de não denunciar. 

Neste 8 de março, desejamos lembrar que por mais hostil que a sociedade seja para as mulheres, e mais para umas do que para outras, não cessamos de criar e expandir frestas feministas. Portanto, escrevamos, cantemos e criemos. Façamos a nossa parte para alargar o horizonte onde desejamos correr livremente, com as velhas e novas lobas que vieram e que virão.

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