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Rincon Sapiência: “ano após ano precisamos abolir outras questões”

Cantor acredita que ainda é preciso avançar para negros conquistarem liberdade igualitária

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O cantor Rincon Sapiência, que também gosta de ser chamado de Manicongo, denominação dos reis do Congo, acredita que o 13 de maio é uma data significativa para o fim da escravidão, mas ressalta que o processo de abolição dos negros no Brasil perdura até hoje. “A liberdade que temos diz respeito a não ter correntes, você poder ‘transitar’, mas a gente sabe que os corpos pretos, dependendo do horário na rua, tem seus riscos, o que representa o corpo preto em liberdade é visto de forma preconceituosa: a questão estética, religiosa, tem uma série de questões a serem abolidas ainda”, afirma.

Outro processo que permanece, segundo o rapper, é o de aquilombamento das pessoas escravizadas, mas hoje os negros fazem na periferia, na favela. “É você se organizar socialmente num lugar que tem suas precariedades, porém consegue usar o seu dialeto na forma de se comunicar, manter seu signo, suas tradições. Isso é permanente nas periferias, porém, a situação não é das melhores, principalmente nas questões econômicas, em decorrência desse processo de abolição incompleto. Ano após ano precisamos abolir outras questões para termos essa liberdade igualitária”, defende.

 

O processo incompleto de abolição no Brasil, em que os negros foram libertos, mas não tiveram direito a terras ou indenizações, reflete hoje no racismo estrutural da sociedade. Rincon lembra que o racismo no Brasil é sofisticado e que hoje é menos comum alguém empregar uma palavra como “macaco” para ofender pessoas negras, mas a representação segue pequena em espaços como a TV, política, além de receberem salários menores do que os brancos. “Isso tudo faz parte de uma estrutura racista. Pensar racismo não é somente segregação racial, das pessoas andarem no mesmo ônibus. Aqui, o racismo é mais profundo do que isso. O país continua racista, mas aplicando ele de forma diferente em relação ao passado”, considera.

O cantor que produz músicas politizadas lembra que também gosta de canções para dançar ou falar de amor

O cantor que produz músicas politizadas lembra que também gosta de canções para dançar ou falar de amor. “Outras questões que parecem fúteis são importantes: o entretenimento, o lazer, sensação de bem-estar, o afeto. Tudo isso faz parte da nossa vida também. Por mais que associem o meu trabalho com essas questões políticas, eu não sou um cara que acordo e vou ler um livro do (Thomas) Sankara, vou militar na rua. Eu gosto de futebol, de ver série, desenho, quadrinho”, pontua. A possibilidade de pertencer a esses outros espaços é importante para garantir o bem-estar e fugir do lugar comum: “Você é preto, então, tem que falar desse jeito, se vestir dessa forma, se posicionar assim. Não queremos ser condicionados. A gente quer alforria, abolição. Não queremos só conectar em conflitos, mas pensar no amor também”, ressalta.

Caminhada São Paulo Negra

Na sexta-feira 10, Rincon participou da Caminhada São Paulo Negra, realizada pela Black Bird, sobre a história de lugares importantes da capital paulista que foram sendo apagados, como é o caso do Bairro da Liberdade, primeiro reduto dos negros na cidade, do Pelourinho, onde havia tortura dos escravos e hoje é a Praça João Mendes, sem referência a essa memória, e do Bixiga, conhecido como bairro italiano, mas que tem uma população negra grande e centros de cultura como a escola de samba Vai Vai e a escola de capoeira do mestre Ananias.

Caminhada São Paulo Negra passou por lugares históricos e importantes da capital paulista que foram sendo apagados

O tour, conduzido por esse repórter, pela relações públicas Luciana Paulino e pelo produtor cultural Heitor Salatiel, também fala de personagens como o abolicionista Luiz Gama e a escritora Carolina Maria de Jesus, além de narrar a nova migração africana e seus negócios em lugares como a Galeria do Reggae. “Eu vinha aqui buscar novas músicas. Gravar fitas cassetes e em busca do que estava ocorrendo na cidade”, conta Rincon sobre a sua relação com a galeria. O cantor ressaltou ainda a importância de resgatar histórias como essas e de poder ouvir narrativas do ponto de vista da negritude. “A maior parte dos lugares não tem placas que os sinalizam e nossa história é muito oral. É importante contarmos para mantê-la viva”, considera.

Galanga Livre

O 13 de maio também é uma data significativa para o cantor que comemora um ano do lançamento do single “Crime bárbaro”, o último do disco Galanga Livre, que tem como narrativa o escravo que mata o senhor de engenho. “A filosofia é a gente matar valores morais que privam a gente de ser a gente mesmo”, explica. A expectativa em relação ao disco era alta, já que Rincon vinha do sucesso com a música “Ponta de lança” e as projeções foram confirmadas por meios de prêmios e repercussão junto ao público.

O cantor prepara agora um novo álbum para o segundo semestre. “Vivo outras coisas, escutando muito da música pop que é produzida no continente africano e que tem me influenciado”, afirma. O novo trabalho fala da nova África e terá elementos de dança e ancestralidade do continente. “Pessoas que gravam vídeos dançando na rua, os africanos em vários lugares diferentes juntam vários dançarinos, colocam uma música de sucesso do momento e fazem uma coreografia. Eu vejo isso de dançar na rua de forma muito ancestral, por mais que seja contemporâneo. O disco novo vem por essa via”, promete.

Fotos: Henrique Carrara

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