Fora da Faria
Uma coluna de negócios focada na economia real.
Fora da Faria
Nostradamus e a catástrofe das cervejas
A maioria dos previsões sobre a derrocada deste mercado carece de fundamento e reflete apenas o desejo (ou temor) de prever o futuro


Analistas de mercado insistem, muitas vezes, em agir como Nostradamus — aquele das previsões infalíveis — só que com o olhar voltado para o consumo. Essa prática se repete em ciclos. Desde o fim dos anos 90, fala-se na derrocada do mercado de refrigerantes, chegando a profetizar seu desaparecimento. Empresas de tabaco migraram para o setor alimentício, crentes de que o cigarro entraria em bancarrota. O mesmo discurso surgiu com os refrescos em pó e, no Brasil, até o leite de coco foi dado como carta fora do baralho. Apesar de todas as “ameaças”, esses produtos seguem firmes.
Por outro lado, houve quem previsse um boom da carne vegetal, das bebidas saudáveis e dos sucos, que supostamente tomariam o lugar dos refrigerantes. Nenhuma dessas apostas se concretizou.
Agora, o alvo é a cerveja. Muitos já preconizam o “fim do mundo” para o setor, com análises alarmistas pouco lastreadas na realidade. Nos EUA, apontam-se como riscos o uso crescente de canetas emagrecedoras (que inibem a vontade de beber), o sucesso das bebidas mistas enlatadas entre jovens e uma suposta mudança de atitude em relação ao álcool — festas sem bebida alcoólica realizadas em cafeterias seriam o sinal dos tempos. A narrativa sugere que o Brasil inevitavelmente seguirá esse caminho. Mas será?
Produtos e categorias só desaparecem quando há uma mudança de hábito profunda ou um produto verdadeiramente disruptivo. No caso da cerveja, há um concorrente desse porte? Não parece. A moda das bebidas mistas (gin tônica pronto, misturas com vodca, saquê ou cachaça) complementa o consumo, mas não o substitui.
No Brasil, a fidelização das bebidas é determinada, sobretudo, pela distribuição. Poucos consumidores trocam de ponto de venda porque sua bebida preferida não está disponível. As grandes cervejarias detêm essa vantagem competitiva: atendem cerca de 1,3 milhão de pontos de venda. Vai aqui o primeiro alerta: mercado não é nicho. Atender essa vasta rede regula a oferta de novos produtos. As cervejarias até poderiam impulsionar segmentos emergentes, mas, logicamente, priorizam a defesa de seu core business — até porque não há um movimento de rejeição à categoria.
Outro tema recorrente é o comportamento de consumo da Geração Z. Criar um perfil monolítico dessa geração, em um país com enormes desigualdades como o Brasil, é, no mínimo, miopia. Segundo o IBGE, a Geração Z representa cerca de 16% da população, algo em torno de 31 milhões de brasileiros nascidos entre 1995 e 2010. Desses, 76% pertencem a lares das classes C e D/E, de acordo com a consultoria IPC Marketing.
Essas mesmas camadas sociais respondem por cerca de 50% do consumo de bebidas no país. O consumo per capita é menor do que sua representatividade populacional, porque a renda disponível para cerveja disputa espaço com aluguel, transporte e supermercado. Um dado interessante: o gasto anual per capita com bebidas no Sudeste é de 412 reais, enquanto no Nordeste é de 202 reais. Se a renda melhorar nessas regiões, o impacto no consumo será expressivo.
As festas sem álcool, por sua vez, parecem mais uma moda cool de um segmento reduzido, restrita a nichos urbanos e algumas capitais. Fatores culturais e religiosos, como o fortalecimento de grupos evangélicos — especialmente nas periferias — podem gerar algum impacto no longo prazo. Mas convém lembrar: o avanço desses grupos não impediu a explosão das apostas online, também alvo de críticas de líderes religiosos.
Há ainda dezenas de outros argumentos usados para decretar a queda do mercado de cerveja. A maioria carece de fundamento e reflete apenas o desejo (ou temor) de prever o futuro. Mercados consolidados e enraizados em hábitos culturais fortes não desaparecem nem sofrem quedas abruptas. A pergunta que as cervejarias se fazem é outra: como aproveitar melhor suas vantagens competitivas?
O consumidor gosta de experimentar, mas valoriza seus hábitos. Não nos tornamos vegetarianos, embora celebremos a saúde e continuemos engordando. Discutimos o meio ambiente, mas seguimos usando sacolas plásticas. Somos contraditórios por natureza. Entender isso evita o deslize de agir como Nostradamus — sem ao menos herdar a fama.
E, sim, ironicamente, esta também é uma previsão.
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