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Pandemia de covid-19 impacta os trabalhadores do vestuário no Brasil e no mundo

Lojas fechadas e queda ou ruptura da produção significam pedidos que não chegam. Consequentemente, o dinheiro também não

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Por Bárbara Poerner

A covid-19 abalou as estruturas do mundo globalizado – isso é fato. A doença, causada pelo coronavírus, tem origem em Wahun, na China, e se espalhou rapidamente. Diante desse cenário complexo, além das medidas básicas de higiene, como lavar bem as mãos e utilizar álcool em gel, o isolamento social se apresenta como um aliado e uma orientação da Organização Mundial de Saúde (OMS) na missão de achatar a curva e diminuir a propagação do vírus: ficar em casa, evitar aglomerações, sair apenas para suprir necessidades emergenciais e trabalhar de forma remota (home office).

Mas como falar em não trabalhar presencialmente num país onde uma grande parte dos trabalhadores da moda se encontra no setor de confecção? Como falar em ficar em casa para aqueles que dependem do salário ao final do mês, e dependem também da permanência dos contratos e pedidos? Como falar em evitar aglomerações para aqueles que moram em regiões lotadas, sem acesso a água para beber – e muito menos para lavar as mãos?

Com uma crise que coloca em prova os valores capitalistas, de acumulação e produtividade desenfreada – da qual a moda faz parte –  podemos observar o trato com os trabalhadores e como as consequências socioeconômicas ocasionadas pelo vírus já estão em curso, com muitos sendo tratados apenas como números.

Como essa problemática aterrissa no Brasil?

Nosso país é o quarto maior produtor de malhas do mundo, o segundo de jeans, e emprega cerca de 1,5 milhões de pessoas (ABIT), onde a maioria destas – porque 75% são mulheres – trabalham no setor de confecção. Somamos a isso as informais, e o número pode chegar a 8 milhões de trabalhadoras.

A realidade se apresenta nesta complexidade: como muito do trabalho é informal, o salário nem sempre é garantido no final do mês. Então, lojas fechadas e queda ou ruptura da produção significa pedidos que não chegam, e, consequentemente o dinheiro para pagar as contas e colocar a comida na mesa também não.

Cristina Filizzola, coordenadora do Tecendo Sonhos, programa da ONG Aliança Empreendedora que presta assessoria para costureiros imigrantes em São Paulo, relata como a crise vem sendo sentida pelos trabalhadores autônomos, principalmente os de confecções: “a gente fez esse levantamento, algumas oficinas estavam finalizando seus pedidos, e dependendo do contratante estava acertada a questão de entrega e pagamento, mas já estavam sem pedidos novos. Outras já estavam paradas, e ainda outras que estavam com a produção já feita, mas não foram buscar e nem pagar.”

A informalidade já é algo que bate na porta há tempos no Brasil. Amanda Burg, advogada e doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), afirma que “é perceptível que a precarização das relações de trabalho vem ocorrendo de forma acelerada nos últimos anos”. Ela pontua  o aumento do número de trabalhadores informais no Brasil: “o percentual saltou de 39,1% em 2014 para 41,5% em 2018, e a taxa de desocupação aumentou de 6,9% em 2014 para 12% em 2018, conforme dados do IBGE (2018)”.

Para a advogada, tanto os trabalhadores formais ou informais serão afetados “principalmente em caso de omissão estatal”. Isto porque “os trabalhadores formais tendem a ser impactados pelas demissões em massa e cortes de salário e os informais tendem a enfrentar uma diminuição do fluxo de trabalho”, conta.

Realidade global: como estão os trabalhadores de outros países?

Se o Brasil flutua entre os cinco maiores produtores de artigos têxteis no mundo, quem são os outros competidores?

Hoje, em 2020, são os países da Ásia. Em 2001, o continente foi responsável por mais de 40% do valor das exportações mundiais de têxteis e de vestuário. A China, seu maior país, teve uma crescente ascensão na produção de artigos têxteis na década passada: em 1995, produziu 9,7 bilhões de peças; apenas cinco anos mais tarde, em 2000, a produção já subiu para 17,5 bilhões. Essa alta transformou a China num grande produtor e exportador de vestuário, correspondendo a 44,5% das exportações mundiais de malha (2019); no elo da confecção, o mercado mundial exportou US$ 338 bilhões em 2009, sendo 34,7% do montante, chinês.

Nesta onda, embarcaram os países vizinhos como Índia e Bangladesh. O último tem sua indústria voltada para atender mercados globais de varejo –  como Topshop, Zara e Walmart – onde o vestuário representa cerca de 86% do total de exportações do país – tudo a preços extremamente baixos: Em 2016, Bangladesh era o segundo fornecedor mais barato de roupas para a União Europeia entre dez países competidores.

Porém, a realidade dos preços baixos já mostrou sua face no desabamento do edifício Rana Plaza, em 2013, que culminou no surgimento do Fashion Revolution. Com a pandemia de coronavírus e as complicações socioeconômicas, a realidade para estes trabalhadores asiáticos, que produzem grande parte de todas as roupas usadas no mundo, tem sido cruel.

O relatório “Abandonadas? Impacto do do covid-19 em trabalhadores e empresas no âmago das cadeias globais de fornecimento de vestuário”, publicado em 27 de março pelo Centro de Direitos Globais dos Trabalhadores da Universidade Estadual da Pensilvânia (EUA), revela que, desde o início da pandemia de coronavírus: mais da metade dos fornecedores de Bangladesh tiveram seus pedidos cancelados, mesmo aqueles em andamento ou já prontos; com o cancelamento dos pedidos, 72,1% dos compradores se recusaram a pagar pelas matérias-primas que já haviam sido compradas pelo fornecedor; 91,3% dos compradores se recusaram a pagar pelo custo de corte e acabamento do fornecedor; 58% das fábricas pesquisadas relatam ter que encerrar a maioria ou todas as suas operações; e 80,4% dos trabalhadores demitidos das fábricas foram enviados para casa sem pagamento de indenização.

Os caminhos possíveis

Mediante o cenário, as saídas exigem esforços da sociedade civil, setor público e iniciativa privada. No Brasil, a níveis estatais, foram aprovadas medidas importantes, como a Renda Básica Universal, que prevê o pagamento de R$ 600 per capita a trabalhadores informais, podendo chegar até a R$ 1200 por família. A legislação trabalhista também garante a integridade do trabalhador, que não é obrigado a trabalhar sob riscos graves à sua saúde.

Além disso, medidas como linhas de crédito em condições especiais, suspensão do pagamento de amortizações de empréstimos do BNDES, redução da jornada de trabalho e suspensão de contrato são projetos adotados pelo Governo Federal para indústrias e serviços, variando as condições de acordo com seu porte.

A iniciativa privada, por sua vez, deve garantir os direitos e integridade de seus trabalhadores e fornecedores, utilizando as medidas estatais como base emergencial. A indústria ainda pode utilizar sua força produtiva para fornecer os materiais considerados urgentes pelo Governo Federal, como uniformes hospitalares para profissionais de saúde que atuam no combate direto do vírus. A Associação Brasileira das Indústrias Têxteis (ABIT) criou uma plataforma para aproximar empresas que querem auxiliar nesta atuação.

Além disso, marcas, empresas e outros setores podem contribuir com a disseminação de informações seguras para orientar sua rede de trabalhadores e comunidade – seja em comunicados institucionais, ativações em mídias sociais, etc.

Enquanto sociedade civil, Amanda relembra que a atuação pode acontecer “de forma direta, com a atuação junto aos grupos de risco, organizando ações de cunho beneficente, informacional, de formação para o trabalho etc.” e “indiretamente, junto ao Poder Público, de modo a incentivar projetos de leis e políticas públicas que beneficiem os grupos mais afetados pela crise e em situação de fragilidade.”

O Fashion Revolution incentiva essa mobilização coletiva e ampliação da movimentação social por meio da pergunta “quem fez minhas roupas?”, questionando marcas, indústrias e varejistas sobre suas políticas de gestão de crise e amparo aos seus trabalhadores mediante esta crise.

Um momento de virada?

Interpretar essa realidade como uma virada de página que institui novos modelos de comportamento, produção e consumo é uma dose de otimismo que pode ser boa,  mas é preciso tomar cuidado: para muitos, a página seguinte é no vermelho, sem renda, sem trabalho, com mais informalidade e precarização.

Então, quem vira a página? Somos nós os condutores deste fio. Não podemos terceirizar nosso papel importante de trabalhar nas bases e construir uma indústria da moda justa e transparente para uma pandemia global. Em meio a crise achamos outros modos de viver, então este momento pode sim florescer o surgimento de novos sistemas e visões, mas precisamos ainda de muita mobilização e coletividade.

Vamos olhar para dentro, fazer um balanço e compreender a forma debilitada que temos nos relacionado com o planeta e com as pessoas. Já passou da hora de virar essa página, de mudar nossos processos produtivos, de criação e geração de valor. Nosso desejo é para que essas reflexões e consciências brotem e se transformem em mudanças no futuro que já construímos, onde a moda não acumula riquezas materiais e exploração, mas sim criatividade, afeto e emancipação.

*Comunicação Fashion Revolution Brasil

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