Diálogos da Fé

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Um olhar evangélico ‘raiz’ sobre o Papa Francisco

Nestes dez anos de pontificado, ele atuou como um Papa Pastor

O papa Francisco. Foto: Filippo MONTEFORTE / AFP
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Evangélicos no Brasil tiveram um imaginário em torno dos papas da Igreja Católica construído com base em rejeição. A herança crítica da Reforma Protestante à “corrupção” que a Igreja de Roma promoveu contra o Evangelho alimenta um imaginário negativo na figura do seu líder maior, o Papa. A imagem é fortemente atrelada à ideia do poder terreno que perverte a fé (como chefe de Estado) e à riqueza representada no amplo patrimônio da Igreja Católica. 

Na verdade, o papado é um princípio e uma tradição de governo da Igreja Católica Romana que, por mais que viva desgastes, é um elemento sólido, determinante da identidade desse segmento cristão e da sua dimensão de unidade. Cada Papa traz consigo princípios teológicos e pastorais relacionados à sua formação, à sua compreensão e experiência com a fé e a sua visão de mundo. Foi assim com outros papas que abriram ou fecharam a igreja para questões que implicavam concepções doutrinárias ou a relação da igreja com a sociedade. 

Quando o Papa Francisco assumiu, em 13 de março de 2013, ele sucedia, praticamente, dois papas. Primeiro, João Paulo II, que, por 26 anos, se tornou muito popular, marcadamente por suas dezenas de visitas papais a muitos países do mundo. Deu atenção a povos e situações antes esquecidos pela liderança maior da Igreja Católica, colocando-se fisicamente presente. 

João Paulo II, porém, tornou-se também conhecido como aquele que “puxou o freio do processo e deu marcha-ré” a uma série de avanços do Vaticano II, com a assessoria especial daquele considerado seu “braço direito”, o cardeal e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (o antigo tribunal da Inquisição) Joseph Ratzinger.

A ofensiva conservadora que marcou a Igreja Católica, no final dos anos 80, nos anos 90 e nos 2000, estabeleceu um período de oposição a tudo o que alimentasse a igreja progressista, acusada de ser um desvio marxista. Foram 26 anos de pontificado de João Paulo II (1978 -2005), caracterizados por perseguição a bispos, padres, freiras e leigos ligados à Teologia da Libertação, ou simplesmente lideranças comprometidas com os princípios do Concílio Vaticano II, a fim de “restaurar a grande disciplina”, como João Paulo II afirmou ser prioridade de seu papado, no discurso inaugural. 

Ratzinger se tornou o Papa Bento XVI, em 2005, para manter e garantir a continuidade desse projeto, afinal, 172 dos 184 membros do Colégio Cardinalício foram nomeados por João Paulo II. Porém, foi um curto papado. Em 11 de fevereiro de 2013, Bento XVI apresentou sua renúncia. 

Foi neste contexto que, um mês depois, o Colégio Cardinalício elegeu como Pontífice o argentino, religioso da ordem dos jesuítas, Jorge Mario Bergoglio. Numa referência ao santo de Assis, reconhecido pelo seu trabalho com os empobrecidos, o primeiro latino-americano a se tornar Papa escolheu o nome Francisco. A escolha do nome marcava a identidade do episcopado de Bergoglio, como um homem sem luxos, com vocação missionária.

A qualidade de Francisco como “pastor”, elemento significativo do seu papado, relevante característica de uma liderança religiosa sacerdotal, do ponto de vista “evangélico raiz”, possivelmente colaborou para a reconstrução da imagem do Papa entre evangélicos, com elementos muito positivos.

A figura do pastor é muito destacada na tradição cristã pela atividade pastoril que marcava o sustento da vida: a criação de ovelhas e o trabalho do pastoreio. Esta atividade era transportada simbolicamente para a vivência da fé. 

Deus é considerado o Verdadeiro Pastor, o modelo de pastoreio, pois tem autoridade e é dedicado àqueles de quem cuida, tem poder e carinho, tem vigor e ternura. A maior imagem disto está no Salmo 23, “O Senhor é meu Pastor e nada me faltará”. Assim como Deus faz, os governantes e os líderes religiosos deveriam fazer também, na responsabilidade de conduzir o povo, para o seu bem-estar.

Jesus demonstra, então, com suas ações todas baseadas em misericórdia e justiça, o sentido de ser um bom pastor: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas” (Jo 10.11-15). Jesus reafirma o sentido do pastoreio das ovelhas que, nesta imagem, representam todos que carecem de cuidado amoroso, misericordioso e justo: acompanha-as todas, guia, cuida, conduz, abre caminhos seguros, de bem viver.

A tradição das igrejas evangélicas do valor ao pastoreio dos sacerdotes, no cuidado com o rebanho mais próximo, a Igreja, e o mais amplo, o mundo, torna possível olhar para o pontificado implementado por Francisco por este prisma: o do Papa Pastor. 

São muitos exemplos destes dez anos. Destaco neste artigo a primeira visita papal, pouco mais de três meses depois de assumir a função, em 8 de julho de 2013, à Ilha de Lampedusa. Ela funcionou como um “cartão de visita” do que a figura dele passaria a representar.

Entre a Tunísia e a Itália, no trecho de mar denominado “Canal da Sicília”, Lampedusa é uma das principais rotas de entrada de refugiados do Norte da África, via Mediterrâneo, em busca de sobrevivência na Europa. São cerca de cem quilômetros de mar, mas um trajeto que representa caminho para mortes dramáticas de milhares de pessoas, boa parte delas por conta dos naufrágios das embarcações precárias e superlotadas; outra parte devido à falta de água e comida dos que ficam à deriva no mar. 

Quando Francisco visitou Lampedusa, estimava-se que cerca de 20 mil pessoas haviam morrido naquelas condições de travessia nas duas décadas anteriores. Dias antes, um barco com 165 migrantes do Mali atracou no porto. No dia em que Francisco estava na ilha, 120 pessoas foram resgatadas no mar depois que os motores de um barco quebraram a 11 quilômetros da costa, entre elas, quatro mulheres grávidas.

A breve visita papal, de um dia, foi marcada por comunicação simbólica e de palavras fortes. Depois de colocar uma coroa de flores no mar para reverenciar os mortos, Francisco fez uma crítica ao que chama de “globalização da indiferença” aos migrantes, classificando-os como principais vítimas de uma “cultura do descartável”.

“Vamos pedir ao Senhor para retirar a parte de Herodes que se esconde em nossos corações”, acrescentou. “Peçamos ao Senhor a graça de chorar sobre a nossa indiferença, de chorar pela crueldade do nosso mundo, do nosso coração e de todos aqueles que no anonimato tomam decisões sociais e econômicas que abrem as portas para situações trágicas como esta”, desafiou o então novo Papa.

A visita de Francisco foi muito impactante e encorajou a Igreja Católica e as demais igrejas irmãs a aumentarem esforços de cuidado com migrantes. Com isso, Lampedusa apresentou à Igreja Católica e ao mundo o Papa Pastor, que demarcava concretamente o sentido do desejo que manifestou a jornalistas, em encontro logo após sua eleição: “Como eu gostaria de uma Igreja pobre para os pobres!”. Francisco ali estabelecia sua plataforma de trabalho ancorada no pastoreio do cuidado comprometido com a justiça.

Neste contexto, Bergoglio inscreveu seu nome como o primeiro Papa latino-americano, o primeiro Papa jesuíta, o primeiro Papa com o programático e simbólico nome de Francisco. Tudo isto o tornou singular e suficiente para fazer história.

Os focos de oposição, em todos os continentes, particularmente na América Latina, ao Papado marcadamente humanitário e conciliador de Francisco devem-se fortemente ao legado conservador dos dois pontificados passados. Há muita resistência de alas da Igreja Católica a suas ações marcadas pela reestruturação das confusas finanças do Vaticano, criação de comissão para combater abuso sexual de crianças na Igreja, defesa de uma Igreja mais tolerante em questões de família, duras críticas ao capitalismo, à destruição do meio ambiente e colaboração na reaproximação Cuba e Estados Unidos.

Porém, mais do que isto, Francisco faz história com sua proposta de imprimir um estilo humanizado ao cargo, coerente com suas ideias. Por isso ele marca seu pontificado como um Papa Pastor: busca se aproximar das pessoas comuns e de suas mazelas, com discursos simples, ações e propostas de humildade para a Igreja. 

Francisco, portanto, rompe com o histórico aparato em torno do cargo, que tende a afastar Pontífices dos fiéis, e mais ainda dos considerados “infiéis”. Ao mesmo tempo que atinge racionalidades, afeta corações, por isso é possível reconhecer que evangélicos tendem a se sentir um pouco mais próximos e menos avessos a um Papa.

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