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Um apelo ao papa Francisco em prol do respeito às diferenças

É possível salvar-se dos pecados cometendo atrocidades contra aqueles que não professam a mesma fé?

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É em nome da fé, santo padre, que escrevo esta carta e, ao estendê-la a todos os cristãos, espero que desperte o sentimento de humanidade preconizado por Jesus e seguido com rigor por Vossa Santidade. Sei que a fé cristã provém da concepção de que não existe ser humano isolado, de que o indivíduo só pode existir ao se integrar ao todo. Contudo, esses tempos trazem a marca da diferença, que separa e exclui, que tem levado os seguidores de Cristo a esquecer de seus ensinamentos.

Se a base do cristianismo está na paixão, morte e ressurreição de Jesus, é importante que cristãos não se esqueçam de que tudo isso foi feito para o bem da humanidade. Portanto, é na vida em comunidade, com o outro, que um seguidor do Evangelho revive e reitera os princípios de sua fé. Acredito, santidade, que a salvação não pode ser um fim. Se o amor ao próximo é a base de tudo, salvar-se implica uma atitude abnegada, de quem olha para o todo, e não apenas para si.

Espero que Vossa Santidade e os que comungam da fé em Cristo não me interpretem mal. Eu nem sou cristão e jamais me acharia no direito de lhes dizer como um cristão deve proceder. Porém, sempre imaginei que a conduta de um católico, protestante ou mesmo evangélico pressupunha mirar-se na vida e morte de Jesus para o bem comum, em detrimento de atitudes egoístas, centradas simplesmente no indivíduo. O que temos vivido, Papa Francisco, parece o oposto de tudo que Cristo ensinou.

Para ser verdadeiramente cristão não é necessário tornar-se verdadeiramente humano? Ora, se na liberdade da simples bondade humana reside o princípio da fé e da caridade, o amor ao próximo ajuda a reconhecer que a esperança supera o individualismo. O seguidor de Cristo ama a Jesus e o aceita como seu salvador ao observar e cumprir de coração seu exemplo.

Sei que Vossa Santidade acompanha com muita atenção tudo que se passa no Brasil. Sei que reza para que a justiça e a verdade possam prevalecer, que se preocupa com a Amazônia, que reza pelo nosso povo. Sei, acima de tudo, que é um bom cristão, um discípulo de Cristo no sentido mais pleno. Por isso apelo ao seu senso de humanidade e solidariedade, por isso peço que suas orações e ações também se voltem para o sério problema da intolerância religiosa em nosso País. Na verdade, essa face cruel do racismo tem se voltado contra as tradições de matriz africana com a mesma violência do terrorismo fundamentalista em outras partes do mundo.

Apelo, Papa Francisco, ao seu sentimento cristão. Apelo a seu empenho em prol da humanidade, ao respeito às diferenças, ao amor ao próximo, ao diálogo. Apelo porque já não temos um governo que nos garanta a liberdade de consciência e de crença, porque o projeto de poder que se instaura no Brasil não reconhece o direito das minorias. Apelo porque confio nas suas palavras e atitudes, porque acredito que habita em seu coração o mesmo desprendimento que moveu Mãe Menininha, Chico Xavier e Dom Hélder.

É possível salvar-se dos pecados cometendo atrocidades contra aqueles que não professam a mesma fé? Declarar guerra ao outro é realmente o caminho para o reino de Deus? Pode haver salvação sem amor, sem caridade? É legítimo ser cristão e vilipendiar a crença alheia? Talvez Vossa Santidade não saiba, mas o candomblé é um espaço de reconstrução e resistência, sem o qual negros e negras não teriam sobrevivido nem à escravidão, nem a todos os projetos de exclusão que se seguiram.

Destruição e morte como saldo da ação criminosa dos “Bandidos de Cristo” ou “Bonde de Jesus”. Claro que as denominações cristãs não apoiam esse movimento, mas o silêncio, a falta de atitude ou de um posicionamento contrário soam como descaso e, considerando a postura de algumas igrejas, até conivência. “Lavar as mãos”, definitivamente, não é um gesto que se espera de um cristão.

No Brasil, a potência da igreja católica e dos cristãos parece essencial para a manutenção da democracia. Nossa luta por um Estado verdadeiramente laico, que garanta os mesmos direitos para todas as religiões, perde força à medida que avança um projeto de poder evangélico neopentecostal que demoniza as manifestações da cultura negra, incita ao ódio e à violência. Vossa Santidade não é conivente, não coaduna com tamanha injustiça e pode usar sua influência para nos ajudar, para comprovar que os princípios de Cristo seguem vivos e cumprem sua vocação humanitária.

O grande desafio do amor ao próximo passa pelo reconhecimento das diferenças, pelo perdão, pela compaixão. Se o Espírito Santo habita em cada cristão, seus ensinamentos devem orientar e corrigir, ajudando os fiéis a viverem dentro do exemplo de Jesus Cristo.

Os cristãos evangélicos dizem que é necessário aceitar Jesus como salvador, mas os significados disso têm se perdido para muitos, que assumem o combate e a eliminação do outro como estratégia de domínio, impondo sua crença como a única que transforma, como a detentora da mais absoluta verdade. Os desdobramentos disso vão desde a incapacidade de conviver e ouvir, passam por agressões verbais e físicas e chegam ao extremo de ameaçar a vida dos adeptos das tradições de matriz africana. Não é possível que a Santa Madre Igreja se mantenha impassível.

Eu peço a Vossa Santidade que reze por nós, mas que se levante e mostre aos cristãos de todas as vertentes que o pecador se afasta de Deus. Nem todo erro é um pecado, mas uma ação deliberada que incita ao ódio e à violência é um crime, e se a força da lei não tem sido suficiente para impedi-lo é preciso que os homens justos se unam e ajam em suas comunidades, apontando as falhas de seus devotos, não permitindo que atirem pedras naqueles que julgam errados.

A Igreja Católica já reconheceu tantos erros. Rever-se é necessário. Mudar posturas e posicionamentos, acolher sem julgar, lutar contra as injustiças, pedir perdão, perdoar. O pecado da desumanidade ainda é perpetrado em nome de Jesus e a intolerância é a chama que ilumina um caminho obscuro, que leva à destruição de todos os ideais cristãos. Um traficante evangélico não segue em hipótese alguma os princípios da fé, mas quem assiste sua ação e segue incólume não é menos vil. Aqueles que desvirtuam o cristianismo agem contra o amor de Cristo. Aqueles que se calam diante dessa injustiça também.

Fica aqui meu apelo aos cristãos e a Vossa Santidade. Que todos os Orixás nos abençoem!

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