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Histórico, CD “Obatalá” celebra vida e legado de Mãe Carmen do Gantois

Mais que um álbum para celebrar a vida e a obra dessa iyalorixá, é uma proposta de diálogo entre as religiões por meio da musicalidade

Divulgação
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A presença de Mãe Carmen impõe muito mais que respeito. Ela não anda só e a cada passo evoca um legado centenário, milenar, ancestral. O silêncio e a paz sempre acompanham a iyalorixá, que guarda a herança e os saberes de Mãe Menininha, que transmite com calma e tranquilidade, na voz suave e terna, a história de um dos mais importantes terreiros de candomblé do Brasil.

Carmen Oliveira da Silva, Mãe Carmen do Gantois, Mãe Carmen de Oxalá, simplesmente Mãe Carmen. Simples na condução de sua missão tão nobre, atenta a seus filhos e filhas e atenciosa com cada visitante que a procura para uma bênção ou um abraço. Quem já teve a oportunidade de trocar uma palavra com Mãe Carmen sabe que mesmo em poucos segundos ela nos faz sentir como a pessoa mais importante do mundo. Olhos nos olhos, braços acolhedores, a mão nas mãos. Assim como sua grande mãe, a iyalorixá não se fez intocável, segue humildemente acolhendo os que precisam de apoio.

Mãe Carmen nasceu em Salvador, em 1928. É a segunda filha de Mãe Menininha, irmã de sua antecessora, a iyalorixá Cleusa Millet, ou Mãe Cleusa de Nanã, que ocupou o trono do Gantois até sua morte, em outubro de 1997. Mesmo tendo construído uma carreira profissional como contadora, Mãe Carmen sempre se dedicou ao candomblé, tanto ao lado da mãe como da irmã mais velha. Iniciada desde criança, foi consagrada ao orixá Oxaguiã, Oxalá no seu esplendor guerreiro, no seu vigor pleno, na jovialidade de ações e ideais.

Os mais de 90 anos com disposição, saúde e alegria merecem todas as celebrações. A vocação guerreira de quem nasceu pra brigar por união e paz se impõe estrategicamente na luta contra a intolerância religiosa. Ela sabe a força de sua dinastia, de seu reinado, e levanta sua voz com doçura, e conclama, e chama, e convida para o diálogo, para que cantemos juntos um canto de amor ao grande orixá do branco, da ausência e da junção de todas as cores, da unidade e da diversidade: Obatalá.

A gravidade dos episódios mais recentes de intolerância e racismo religioso demarcam um tempo sombrio, nefasto. Num cenário de terrorismo, com tantos terreiros invadidos e destruídos, com vários registros de lesões e até mortes, era necessário um projeto desse porte. Gilberto Gil ficou encarregado de reunir os amigos: filhos e filhas ilustres do terreiro, admiradores de Mãe Carmen e de Mãe Menininha, gente que respeita a fé e a memória ancestral de um povo. Dessa forma, “Obatalá – Uma Homenagem a Mãe Carmen”, tornou-se mais que um álbum para celebrar a vida e a obra dessa iyalorixá: é uma proposta de diálogo entre as religiões por meio da musicalidade.

Ivete Sangalo participa do lançamento do álbum com outros artistas, filhas e filhos de santo de Mãe Carmen do Gantois (Divulgação)

Gil acredita que o candomblé é um elemento importante da civilização brasileira e que o CD será um aspecto importante do candomblé. “O disco traz a mensagem de paz e resistência. Uma homenagem à Iyalorixá, Mãe Carmen, nos remete ao universo feminino onde a luta, o saber e o zelo estão juntos para a construção de um mundo comum”, ressalta.

O projeto é uma iniciativa do Grupo Ofá, e além de Gilberto Gil contou com as preciosas participações de Alcione, Gal Costa, Zeca Pagodinho, Nelson Rufino, Daniela Mercury, Carlinhos Brown, Lazzo Matumbi, Marisa Monte, Jorge Ben Jor, Margareth Menezes, Márcia Short, Ivete Sangalo e Mateus Aleluia, que emprestaram suas vozes aos cânticos tradicionais do candomblé ou a composições em homenagem à Mãe Carmen e aos orixás.

Todos os ritmos que marcam a música brasileira demonstram a dimensão da influência das religiões de matriz africana na construção de nossa cultura. Desde o CD Odun Orin, lançado com grande sucesso pelo Grupo Ofá no ano 2000, o som sagrado dos atabaques ganhou a companhia de instrumentos de cordas e arranjos arrojados, que, somados à voz da saudosa ebômi Delza, inovaram na forma de registro ao manter o rigor e o respeito à tradição. Iuri Passos é mestre em percussão, membro do grupo e idealizador do projeto Obatalá. Filho do Gantois, lança toda sua criatividade numa grande ideia que une técnica, emoção e religiosidade.

Outros dois filhos de santo do terreiro participam ativamente do projeto. O Assobá Yomar Passos é o sacerdote responsável pelo culto a Obaluaiê/Omolú, braço forte e fiel de Mãe Carmen, sempre encarregado dos ritos fúnebres do axexê. Guarda também a sabedoria dos mais antigos e percorre o Brasil inteiro representando o Gantois com a dignidade de seu posto. A voz mansa e o conhecimento profundo sobre os orixás reiteram o caráter de preservação do sagrado que desde o início norteiam o Grupo Ofá.

Nessa homenagem à Mãe Carmen, junta-se ao grupo mais uma filha do Gantois. Luciana Baraúna é a voz que ressoa o poder do sagrado feminino, fazendo jus à tradição do terreiro. Ao entoar o canto solo dos orikis e na regência do coro dos backing vocals, traz para o projeto a força de sua presença e do seu timbre e a beleza de sua divindade: Ewá, a deusa de tantos mistérios.

Na direção geral do CD “Obatalá – Uma Homenagem a Mãe Carmen” está Flora Gil, que circula com naturalidade tanto no meio artístico, quanto no universo mágico do candomblé. Foi ela que articulou e mobilizou as forças necessárias para a concretização dessa merecida celebração ao legado da grande herdeira de Mãe Menininha do Gantois.

A festa de lançamento aconteceu na noite do dia 4 de setembro e reuniu no terreiro mais famoso do Brasil artistas consagrados e religiosos não só do candomblé, num ato de fraternidade e união. Ivete Sangalo e Daniela Mercury falaram com entusiasmo e respeito e soltaram suas vozes, que ainda ecoam como um brado contra todas as formas de preconceito.

O CD já está à venda e encontra-se disponível em todas as plataformas digitais. Vale a pena conferir um trabalho primoroso que festeja a existência de Mãe Carmen e se estende num gesto de homenagem a todas as iyalorixás que a antecederam em todos os terreiros da Bahia e às que seguem com ela na luta por um dia de paz para toda a humanidade.

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