Diálogos da Fé

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Malandro, mestre e protetor: quem é Zé Pilintra

A malandragem tem seu patrono. Nos morros cariocas ou nas periferias paulistanas, Seu Zé Pilintra protege o povo da rua nas noites e madrugadas

Zé Pilintra, origem nordestina
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Lá do Catimbó do Nordeste, das mesas da Jurema Sagrada, das pajelanças, chegam as primeiras histórias desse “nego”, Seu Zé Pilintra, uma das entidades mais populares das tradições de matriz africana.

No pé da juremeira, a árvore sagrada, o pau da ciência, firmou seu ponto e fincou sua raiz. Do solo santo, das covas medidas pelo latifúndio, brotou a semente dos mestres.

A força da oração, do catimbó, atravessa o território brasileiro, chega ao Rio de Janeiro e se espalha. Seu Zé, boêmio, malandro, descendo o morro de linho branco, panamá e bico fino, sambando e gingando no asfalto.

Se o Zé do Catimbó é o mesmo da malandragem não sabemos. Uns dizem que sim, outros dizem que não, mas nesses processos de sincretismo tudo se funde.

A verdade é que a fé nesse “nego” emprestou a sua biografia certo ar de lenda, fortalecendo esse personagem que faz parte do imaginário do nosso povo.

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Contam que Zé Pilintra é uma entidade de muita luz e sabedoria. Sua origem nordestina ninguém mais contesta. Mesmo considerado um mestre juremeiro, Zé Pilintra, ou simplesmente Seu Zé, é umas das representações mais populares das macumbas cariocas, de onde chegou aos terreiros de umbanda, tendo seu culto difundido em todo o Brasil.

Nessa transição do catimbó para a umbanda, os domínios e atribuições de Seu Zé foram se modificando. Aqui vale a ressalva de que talvez o Zé Pilintra do Nordeste não seja o mesmo do Rio de Janeiro.

Uns dizem que o Zé da malandragem carioca teria nascido no Morro de Santa Teresa e seria, inclusive, um médium que incorporava o mestre juremeiro. Outros defendem que as histórias se cruzam por conta dos nomes e arquétipos dos personagens.

De fato, a macumba carioca é a grande responsável pela popularidade de Seu Zé Pilintra, considerado o rei da malandragem, das ruas e madrugadas.

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Como bom malandro, gosta de andar de bar em bar, das mesas de carteado, da boa bebida e das sombras das encruzilhadas, onde trabalham suas protegidas, as damas da noite.

É esse arquétipo do malandro, ou seja, daquele indivíduo pouco ou nada alinhado com os padrões sociais, com a moral cristã e com os bons costumes, que Seu Zé representa.

Sempre bem vestido, com seu terno de linho branco e sua gravata encarnada, “caminhando na ponta dos pés como quem pisa nos corações”, como cantou Chico Buarque, Zé Pilintra é a síntese do bom brasileiro, irreverente e debochado, cheio de ginga e jogo de cintura, um verdadeiro mestre-sala.

No culto da Jurema, o Preto Zé Pilintra vem de camisa comprida branca ou xadrez, calça também branca arregaçada, pés descalços e com um lenço vermelho ou estampado no pescoço.

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Como quase todos os mestres, apoia-se num cajado ou bengala e usa o cachimbo, indispensável nesse ritual. Na umbanda, Seu Zé Pilintra vem na linha das almas ou dos baianos e se manifesta como os pretos-velhos, de traje branco simples e chapéu de palha, mas não dispensa o lenço vermelho.

Entre as muitas histórias que contam a vida de Seu Zé Pilintra, uma fala sobre um tal José Gomes da Silva, que teria nascido no interior de Pernambuco. Um negro forte e ágil, bom amante, que gostava da jogatina e das bebidas e nunca fugia de uma pendenga. Cheio de habilidades com a navalha e a peixeira, ninguém ousava desafiá-lo. Até a polícia respeitava sua fama. Tinha, porém, um bom coração e era extremamente galanteador, tratando as mulheres como verdadeiras rainhas.

A boemia, o carteado, o jogo de dados, a vadiagem, as mulheres, as brigas. De tudo que a noite trazia em seus mistérios ele gostava. Sempre que um qualquer se julgava mais esperto, tanto nas cartas como nos dados, caía fácil nas manhas de Seu Zé, que perdia de propósito nas apostas baixas e, no fim, entre um gole e outro, levava todo dinheiro do incauto.

Outra história remete ao povoado de Bodocó, nas proximidades do município de Exu, no sertão pernambucano.

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Dizem que para fugir da seca, a família de José dos Anjos foi para o Recife. O menino teria perdido a mãe aos três anos de idade, sendo criado no meio da malandragem. Passou a dormir no cais do porto e virou moleque de recados das meretrizes. Tornou-se um homem alto, forte e respeitado no métier, mas misteriosamente, aos 41 anos, foi encontrado morto sem nenhum vestígio de ferimento.

A importância religiosa da figura de Zé Pilintra inscreve-se na lógica da expansão da população brasileira e das migrações nordestinas para o Sudeste.

Ao ser assimilada pelas antigas macumbas do Rio de Janeiro e pela umbanda, a entidade sofreu uma espécie de processo de sincretismo, inserindo-se no contexto dos grandes centros urbanos e na dinâmica de uma sociedade industrial.

Traduz, a seu modo, os desafios dos desvalidos de toda sorte, sobretudo os homens negros, que para sobreviver sem dinheiro nem oportunidades tiveram que dar seu “jeito”, que se virar e usar toda sua malandragem e esperteza.

O Preto Zé Pilintra, mestre da jurema e malandro do morro, tem status de doutor. Formou-se na escola da vida, na ciência das leis da sobrevivência, a lei do silêncio, a lei do cão, no mister dos enjeitados.

Advogado dessa gente pobre, Seu Zé é invocado pra todo tipo de ação, desde questões conjugais e domésticas, passando por negócios e finanças, até os casos de saúde.

Na Umbanda do Rio de Janeiro, Zé Pilintra inspirou a linha do Povo da Malandragem, também introduzida nos terreiros de Candomblé da região por conta da conversão de alguns fiéis.

Há, porém, aqueles que ainda o cultuam como um mestre juremeiro, preservando a tradição herdada de migrantes nordestinos.

A maioria dos devotos de Zé Pilintra está nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo. No Nordeste, muitos juremeiros e catimbozeiros preservam os costumes e guardam suas histórias, numa fé que ultrapassa os limites dos cultos afro-brasileiros.

Na ginga de Seu Zé Pilintra toda velha e boa malandragem se reconhece. Pedindo licença a Exu, ele desce a ladeira e toma o asfalto.

Senhor da resiliência, mestre do jogo de cintura, das rodas de capoeira. Navalha no bolso, chapéu panamá, sapato lustrado, andar leve e altivo.

Pai do “jeitinho brasileiro”, pai dos desprovidos. Essa malandragem que o povo brasileiro herdou do negro foi condição indispensável para sobreviver às hostilidades da discriminação e do racismo. Saravá, Seu Zé.

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