Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Precisamos conversar com as mulheres sobre os fundamentalismos religiosos 

E são quatro os eixos que mais podem nos ajudar neste diálogo

Evento evangélico na Praça da Revolução, em Havana (Foto: Adalberto Roque/AFP)
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Os últimos dias não foram fáceis para as mulheres brasileiras. Dias de terror e angústia que revelaram o quanto é difícil ser mulher no Brasil. Soubemos da estatística carioca de que ocorreram pelo menos 102 estupros coletivos no estado, neste ano de 2022. Em Santa Catarina, uma menina de 11 anos e sua mãe foram violadas em audiência que tinha por objetivo avaliar o pedido de interrupção da gravidez, uma vez que a menina havia sido estuprada. A juíza, que deveria protegê-las, usou seu poder para suspender o poder familiar da mãe.

Soubemos, estarrecidas, do caso da atriz Klara Castanho que, além da violência sofrida, teve sua escolha de fazer uma entrega voluntária do bebê, fruto do abuso, exposta por uma coluna de fofocas com o único objetivo de gerar cliques. Ainda, neste período, o Ministério da Saúde realizou uma audiência pública para discutir uma cartilha com orientações para a realização de aborto legal que orienta a investigação policial das mulheres vítimas de estupro que recorram ao aborto legal. 

Ainda nesta maré de péssimas notícias, a UniRio divulgou uma pesquisa de 2021 que diz que a maioria dos hospitais credenciados para realizar aborto legal desencorajam as mulheres que procuram seus direitos. Foram quinze dias terríveis para nós feministas. Dias em que choramos juntas, lutamos juntas e nos amparamos em um mundo que a cada dia mostra que odeia meninas e mulheres. 

Não podemos, contudo, discutir direito ao corpo da mulher sem discutir o fundamentalismo religioso que tem invadido a esfera pública brasileira. Direitos quase centenários – como o aborto legal que é do código penal de 1940 – estão sob ameaça. Nos Estados Unidos, o direito constitucional ao aborto legal retrocedeu, de modo que metade dos estados americanos poderão criminalizar totalmente o aborto. 

Aqui, temos um ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos que defende a abstinência sexual como política pública para evitar gestação na adolescência e que afirmou que meninas na Ilha do Marajó foram abusadas sexualmente, porque não usavam calcinhas. O mesmo ministério, vazou os dados de uma menina de 10 anos, para que fundamentalistas religiosos fossem para a frente de um hospital chamá-la de assassina – uma menina abusada sexualmente e grávida, por conta deste abuso. 

Esses absurdos se tornam mais recorrentes ao passo que figuras como Damares Alves, Carla Zambelli e outras se multiplicam nas câmaras municipais, assembleias legislativas e no Congresso. Esta “defesa da vida”, nada mais é do que uma ferramenta de controle de manipulação da religião de modo que se acumule capital político e muito poder. 

Instituições como a Eu Escolhi Esperar fazem lobby político em inúmeras casas parlamentares. Há um interesse perverso em causar um pânico moral nas famílias atacando as escolas – com projetos como Escola sem Partido -, com o único objetivo de fazer com que a população não confie nos professores.

As pessoas aceitam esse discurso, porque Deus e família ainda são duas coisas que o capitalismo não conseguiu sequestrar delas. Mas bem sabemos que ambos podem, sim, ser ferramentas de controle de mentes e corações. O medo do ataque à família serve à ordem econômica e política. Afinal, quantos ataques à classe trabalhadora passaram pelo Congresso enquanto Bolsonaro exaltava as famílias? 

Digo mais, Deus é uma entidade que humaniza tudo aquilo o que o capitalismo desumaniza na exploração das pessoas e na manutenção das diferenças sociais. Em outras palavras, a religião e a família são dois dispositivos de humanização das pessoas, e as pessoas querem se sentir humanas. Mesmo que essa humanidade seja forjada no controle dos corpos das mulheres.

As contradições do capitalismo se expressam justamente nas contradições religiosas. Por isso vemos mulheres que defendem ideias que são verdadeiros dispositivos de ataque contra elas mesmas. Vemos famílias que lidam com a violência doméstica acreditarem que estão no coração de Deus, porque “o que Deus uniu, homem não separa”. 

A nossa luta é árdua, pois o dispositivo opressor é em sua contradição humanizador. E é necessário que nós progressistas entendamos e respeitemos o imaginário de fé e de família das pessoas. Enquanto uma mulher evangélica, acredito que nossa tarefa nesses tempos difíceis seja  trazer para a concretude da vida os perigos dos fundamentalismos religiosos, nos dedicando principalmente às mulheres que ainda acreditam piamente na família e no Deus dos fundamentalistas, que são muitas. 

E são quatro os eixos que mais podem nos ajudar neste diálogo:

1. a aversão de muitas mulheres à liberação das armas;

2. a precariedade da saúde;

3. o alto custo de vida;

4. a falta de respeito com as mulheres.

Começando por esse ultimo eixo, a população ficou escandalizada com a tortura que a menina de 11 anos  passou, juntamente com sua mãe. Ainda mais, com pastores fundamentalistas como André Valadão que defenderam a postura da juíza do caso. Recentemente, Bolsonaro desrespeitou a vice-governadora de Santa Catarina, em uma atividade pública, além de toda sua trajetória de machismo e misoginia que conhecemos.  Então, é tempo de falar do respeito às mulheres com o maior número de mulheres possível. Falar principalmente da falta de respeito às meninas e jovens brasileiras. 

As armas foram um verdadeiro caos na pandemia. Além do aumento de mortes nas periferias por conta de ações violentas das guardas civis metropolitanas e da polícia militar, no controle das “aglomerações” e de outras ações bárbaras, o uso de arma de fogo para constranger, ameaçar e matar mulheres também aumentou, na pandemia. A pauta armamentista não cai bem para as mulheres, principalmente as periféricas. Então, temos que gritar aos quatro ventos que Bolsonaro e seus asseclas defendem a liberação de armas e que isso ameaça as mulheres e seus filhos.

A saúde também é uma pauta que sensibiliza as mulheres. No decorrer da pandemia, a saúde da família definhou. A saúde da mulher e das crianças foram as mais prejudicadas. As filas do papanicolau e a fila para consultas pediátricas nas UBSs triplicou em todo o país. Os idosos, as gestantes, as pessoas com deficiência tiveram seus atendimentos suspensos, sem contrapartida. Não houve um plano de atendimento remoto, até porque a maioria da nossa população não tem internet. As cirurgias eletivas não aconteceram, e agora as filas são de anos. E as pessoas sabem que a dança das cadeiras no Ministério da Saúde e toda a má gestão, são a causa disto. 

Por fim, a fome está batendo na porta do brasileiro. São quase 25% da população passando fome e quase metade da população em insegurança alimentar. E não há argumento para a barriga vazia. Não há fundamentalismo religioso que dê conta da calamidade pública que é a situação da fome, no Brasil. 

Sei que os tempos são difíceis, e que temos dias de angústia pela frente, principalmente no que tange aos direitos das mulheres. Mas o que me anima é que nunca na história do Brasil, as mulheres estiveram tão abertas para ouvir nossas pautas progressistas. Temos os argumentos, temos motivos para sensibilizar a população para as causas sociais e para os direitos humanos, só nos resta arregaçar as mangas e pisar no mesmo chão que a população brasileira tem pisado. Avante, por um Brasil que possa sorrir de novo!  

Recesso

Eu, Angélica Tostes e Magali Cunha estaremos em recesso neste espaço às quartas-feiras até o final de julho. Retornaremos com os artigos na primeira semana de agosto. 

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