Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Os evangélicos e a causa indígena 

Ainda oscilando entre o proselitismo agressivo e uma postura omissa e silenciosa, a igreja evangélica brasileira precisa repensar suas relações com os povos originários

Integrantes dos povos indígenas de diversos países pan-amazônicos acompanham a Cúpula da Amazônia de 2023. Foto: Evaristo Sa/ AFP
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Estamos às vésperas do 20° Acampamento Terra Livre, movimento encabeçado por diversas etnias indígenas do Brasil que se deslocam de seus territórios até a capital federal e lá permanecem acampados em barracas por mais de uma semana em plena Esplanada dos Ministérios. Movido pelo intuito de dialogar com os governantes, o movimento inclui uma grande marcha, atos de protesto e assembleias. Temas como educação escolar, direitos da população indígena LGBTQIAP+, saúde e resistência aos Projetos de Lei anti-indígenas são algumas das pautas.

As imagens dessas manifestações correm o país e têm ajudado a formar um panorama do que significa este evento que em 2023 reuniu cerca de seis mil indígenas de aproximadamente 180 povos diferentes. Mais do que uma chance única de testemunhar a diversidade étnica brasileira, esse vasto encontro de várias culturas originárias tem muito a ensinar a nossa jovem democracia. 

De igual maneira, observar a forma como o governo responde às reivindicações dos povos originários, é fundamental para entendermos a importância de fortalecer os direitos de todas as camadas da população, especialmente das comunidades tradicionais. Nos anos anteriores, as respostas do governo variaram significativamente, indo de bombas de gás lacrimogêneo a apertos de mãos amigáveis e promessas emocionadas. 

Sabendo que esse grande encontro ocorrerá em alguns dias, me pergunto: o que os evangélicos têm a dizer sobre isso? Qual tem sido a postura desse grupo religioso acerca de uma pauta tão urgente? Para falar desse tema, precisamos olhar para trás e reconhecer que o modelo de missões transculturais que foi introduzido nas Américas carrega profundas marcas do colonialismo.

Oscilando entre o proselitismo agressivo, que busca converter as populações aldeadas ao cristianismo, e uma postura omissa e silenciosa nas comunidades de fé urbanas, a igreja evangélica brasileira precisa repensar suas relações com os povos originários. 

No protestantismo hegemônico, o discurso sobre os povos originários e as comunidades tradicionais frequentemente inclui três fatores significativos que precisamos compreender para desarticular.

Em primeiro lugar, destaca-se o preconceito religioso, que rotula a espiritualidade desses povos como demoníaca, criticando sua veneração aos elementos naturais e aos antepassados como maligna. Essa visão fomenta animosidades e comportamentos violentos, conforme documentado no relatório Intolerância religiosa, racismo religioso e casa de rezas queimadas em comunidades Kaiowá e Guarani, elaborado pela Apib.

Este relatório, publicado em março de 2022, revela números aterradores de episódios de intolerância e racismo religioso, em muitos momentos incitados por comunidades evangélicas.

Outro entrave comum é a prática de algumas denominações evangélicas de conduzir os povos indígenas à fé cristã, muitas vezes através de um processo de conversão imposto pelo medo ou barganhado em troca de melhorias sócio-territoriais. As normas de conduta impostas pela igreja muitas vezes não respeitam o contexto cultural e espiritual dessas etnias. No entanto, é importante enfatizar que isso não significa que esses povos não tenham conhecimento ou relação com o Sagrado.

Esta postura, que persiste desde a colonização, enfraquece a cultura e dilui as tradições, especialmente entre os jovens. Muitos saberes ancestrais, incluindo narrativas e conhecimentos botânicos medicinais, estão intimamente ligados aos aspectos religiosos e acabam se perdendo. No encontro entre a espiritualidade originária e a prática cristã, os indígenas são os mais prejudicados, sofrendo um epistemicídio irreversível.

No entanto, como os evangélicos não são um bloco monolítico, existem muitas facetas da vivência da fé dentro do protestantismo. Em muitas delas, a teologia social historicamente se destacou pela melhoria ampla das condições materiais dos povos originários. Inúmeras escolas, postos de atendimento médico e interferências nas situações políticas para defender trabalhadores e comunidades inteiras não podem ser esquecidas.

Mulheres como a Irmã Dorothy Stang e a pastora luterana Graciela Chamorro, que com seus testemunhos de fé e luta construíram um legado de cuidado com os territórios e suas gentes, devem inspirar as comunidades de fé a agir, exercendo pressão e cumprindo com seu papel de sociedade civil na vigilância e na cobrança dos parlamentares.

Nas demandas por políticas públicas que valorizem os povos da terra e estabeleçam seus direitos, a igreja deve amplificar o clamor por justiça das vozes dos necessitados. Unir-se aos esforços do ATL seria uma iniciativa digna para aqueles que reconhecem a justiça social como uma das bandeiras de luta da igreja cristã. Considerando que os bens de Deus são para todos, é essencial garantir uma partilha não predatória e igualitária dos recursos da terra, assegurando alimento e o desenvolvimento de uma vida digna através de uma espiritualidade libertadora.

Para que a fraternidade e o respeito à diversidade sejam reais, é fundamental caminharmos juntos, com o maracá em punho, compreendendo que a missão dos seguidores de Jesus é unir-se aos que foram marginalizados. Sonho com o dia em que as denominações evangélicas se unirão para lutar pelos direitos dos menos favorecidos deste país.

Até lá, continuarei a semear minhas palavras por aqui, buscando os frutos doces da esperança que um dia serão desfrutados por todos os habitantes desta terra de mil povos.

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