Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

Os evangélicos brasileiros estão nus

Resta ao grupo minoritário de evangélicos, o que se envergonha e cora diante de tantas ofensas, a tarefa profética de explicitar esta nudez

O presidente Jair Bolsonaro (PL) na Marcha para Jesus, junto à primeira-dama Michelle Bolsonaro. Foto: Reprodução
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No clássico conto de Hans Christian Andersen, cheio de humor, homens trapaceiros, se fazem passar por alfaiates. Eles dizem a um determinado rei que poderiam fazer-lhe uma roupa muito bonita e cara, que seria especial, diferente das demais, porque apenas as pessoas mais inteligentes e sábias poderiam vê-la. O rei, muito vaidoso, gostou da proposta e pediu aos homens que a fizessem.

Para a confecção da roupa, os falsos alfaiates exigiram baús cheios de riquezas, rolos de linha de ouro, seda e outros materiais raros e exóticos. Eles guardaram todos os tesouros e mexiam no tear vazio, fingindo tecer fios invisíveis. Todas as pessoas que fiscalizavam o trabalho, a pedido do rei, não viam nada, mas diziam ver um trabalho magnífico, para não parecerem estúpidas.

O rei, então, desfilou pela cidade para exibir as vestes especiais. Ao se expor pelas ruas, ele recebia louvores de todos, uma vez que esperavam ser vistos como pessoas inteligentes e sábias. Foi apenas quando o rei passou no local onde estava uma criança que todos ouviram dela a expressão mais verdadeira de tudo aquilo: “Ih, o rei está nu!!”. Naquela hora, as máscaras caíram e a verdade ficou evidenciada. Porém, apesar do deboche a que foi submetido, o rei decretou: “O desfile tem que continuar!!” E, assim, continuou representando e os lacaios seguiram segurando a cauda invisível.

Neste momento pós-eleições nacionais, ao refletir sobre o papel dos evangélicos brasileiros, os quais estudo há quase 30 anos, este conto me vem à mente. Eles estão nus, expostos pela aliança estabelecida com o projeto de poder do bolsonarismo e seu sedutor discurso moral embalado de “cidadãos de bem”, “crentes fiéis” e “defensores dos valores cristãos”. 

O desejo de poder político e econômico de muitos líderes das igrejas se somou ao imaginário de uma nação tornada evangélica. Esta noção foi plantada entre os fiéis desde os primórdios missionários do século 19. Agora, isto foi tecido pela estratégia política articulada com preciosos fios religiosos: linguagem bíblica, simbologia do messias escolhido, suposto combate à corrupção, defesa da família tradicional contra a educação sexual das crianças, busca da liberdade para eliminação dos inimigos – os pervertidos, identificados nos comunistas, nas esquerdas, em ativistas de direitos humanos, em feministas, em sindicalistas, em profissionais da educação e da cultura.

Para alcançarem estes fins, a plena realização do desejo de poder e a concretização desse imaginário, justificaram meios controversos: uso da mentira, da calúnia, linchamento simbólico de inimigos, incentivo ao ódio, apoio ao livre uso de armas de fogo, negação de um vírus mortal e das medidas sanitárias de sua contenção, condescendência com a promoção de centenas de milhares de mortes, desqualificação e ataque à democracia e às instituições do Estado com aspirações golpistas, entre os mais destacados. Isto sem contar a articulação para a retirada de direitos duramente conquistados por décadas, por parte dos setores políticos.

Como ouvi em apresentação do Prof. Rudolf von Sinner (PUC-Paraná), em seminário na semana passada, a decência é clássica característica da moral evangélica. Ela fomenta a elevação da autoestima e do reconhecimento de fiéis por sua conduta respeitável. No entanto, a noção de decência acabou relativizada por estes meios que levariam a cabo o projeto de poder. As palavras do teólogo me levaram a concluir que a parcela dos evangélicos que abraçou incondicionalmente o projeto do bolsonarismo comprometeu a decência.

O fato de a noção de “decência” entre evangélicos brasileiros ter sido moldada na moralidade pietista e puritana, individualista, com foco restritivo na sexualidade e no lazer, acabou despregando-a de outras questões sociais e coletivas. Agora, isto foi explorado politicamente na forma de rejeição a expressões homoafetivas ou à imaginação em torno do uso de banheiros unissex. No entanto, nenhuma vergonha de mentir ou de espalhar ódio! 

Exemplos são fartos, como os produzidos por uma conhecida família de pastores gospel. Um dos membros não teve vergonha de deturpar uma comunicação recebida do Tribunal Superior Eleitoral para enganar em um vídeo, como se fosse intimação que promovia perseguição a cristãos. Outro pastor da família não teve qualquer pudor de publicar um tuíte desejando a morte do presidente eleito Lula, o que classificou como uma simples ironia de sua parte.

A fala do professor von Sinner foi orientadora para a compreensão desta tendência, ao recuperar o significado de vergonha (pudor) contida no Dicionário Houaiss: “mal-estar, causado por qualquer coisa capaz de ofender a decência, modéstia, inocência (…) em relação a atos que ferem as qualidades de caráter de um indivíduo, como honestidade, honra, etc.”

A sensação de vergonha, ele explicou, deve causar constrangimento quando atos e pronunciamentos ofendem a moral social. Quando há este mal-estar, há uma reação nas pessoas que não é somente emocional (fazendo corar a face), mas também racional, pois representa a consciência de que há um outro, uma outra pessoa ou grupo, que leva a pensar sobre a própria posição. 

Rudolf Von Sinner usou, em sua palestra, a imagem de Adão e Eva, na narrativa da Criação do mundo, no livro bíblico do Gênesis. A sensação de vergonha emerge quando há a consciência do conhecimento do bem e do mal, adquirido pelo homem e pela mulher ao comerem o fruto. Ela é a reação emocional ao reconhecimento racional do bem e do mal que o ser humano reconhece, dando-se conta que está diante de um outro ser. É como as pessoas do conto da roupa nova do rei. Elas foram chamadas à razão pela criança na rua.

O professor citou também o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, em palestra sobre Criação e Queda, para explicar este processo: “em sua vergonha, o ser humano reconhece seu limite (…) a vergonha do ser humano é a referência relutante à Revelação, ao limite, ao outro, a Deus”. Nesse sentido, quem se guia pelos valores evangélicos prima pela coerência da fé, e cultiva um sentimento de vergonha diante de propostas ou práticas que os ofendam.

Por isso, Rudolf von Sinner alerta para um risco: de a vergonha ser negada e ceder lugar ao orgulho. Isto acontece quando um grupo passa a aceitar certas atitudes que ofendem a moral social, permitindo prevalecer injustiça, e afronta aos valores coletivos, o que é uma imoralidade. 

Nesta direção, o professor recorre ao profeta bíblico Sofonias (capítulo 3) para lembrar que existem aqueles que não querem ver o que, de fato, os deve envergonhar: “O Senhor é justo; Ele não erra. Todas as manhãs Ele faz seu julgamento, cada amanhecer sem falta; mas o injusto não conhece a vergonha”.

Uma parcela significativa dos evangélicos brasileiros chega ao fim de 2022 cheia de orgulho e nua. Este grupo expõe, sem vergonha, seu apoio a propostas políticas ancoradas em novas mentiras, usando os púlpitos e seus princípios religiosos para apregoar um golpe de Estado nas ruas. 

Resta ao grupo minoritário de evangélicos, o que se envergonha e cora diante de tantas ofensas ao Deus que cultua, ao Crucificado que serve, ao povo que sofre, a tarefa profética de explicitar esta nudez a fim de manter sua dignidade. Trata-se, de como tenho ouvido,  da tríplice tarefa de “reconstruir o País, unir as famílias e pacificar as igrejas”.

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