Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

O Islã é compatível com a democracia

É uma religião laica, pois reconhece o direito do ser humano de decidir pelo que fazer negando qualquer tipo de imposição

Foto: iStock
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Nos últimos séculos, principalmente devido à evolução dos valores democráticos no Ocidente, há grupos islâmicos que negam a compatibilidade da democracia com o Islã. Para esses grupos, a única forma de “um país islâmico ser dirigido é a sharia”. A maioria deles, na minha ideia, expressa a ideia de forma ignorante. Emprego o termo “ignorante” não como uma ofensa, mas como estado de conhecimento, pois quem estuda um pouco que seja a história do Islã, percebe que os valores democráticos estão embutidos nos primórdios dele.

Uma das mais recentes afirmações nesse sentido veio de um dos altos comandantes do Taleban, que disse: “Não haverá democracia, a lei é a Sharia”. Como no artigo da semana passada conversamos sobre o que é a Sharia, aqui não irei mais uma vez repetir as mesmas informações. Hoje, vamos conversar sobre a compatibilidade entre os Islã e a democracia. Não vou colocar aqui um monte de dados científicos. Apenas vamos retomar alguns conceitos que anteriormente foram mencionados aqui.

Digo que o Islã é compatível com a democracia em resposta a duas questões: primeiramente, aos que acham que valores democráticos são exclusivamente ocidentais. Não, meus caros. Esses são valores humanos que foram desenvolvidos durante a história em decorrência de várias experiências dolorosas e amargas. A própria Europa, que reivindica a si mesma esses valores, a despeito deles, escravizou pessoas por causa de suas cores de pele, explorou terras e seres humanos e ainda hoje em dia pratica várias formas de racismo. Não digo que toda a Europa seja assim, tome cuidado. Mas leve em consideração os estragos causados nos territórios colonizados que causaram migrações e, ainda por cima, os xenófobos do Ocidente querem excluir aqueles cujas vidas foram destruídas.

Em segundo lugar, digo que o Islã é compatível com a democracia unicamente por ter estudado a Constituição de Medina, um documento que já foi mencionado neste espaço por outras razões. E é a partir desse documento que quero desenvolver a minha discussão.

Como os leitores dos textos anteriormente publicados aqui devem lembrar, a Constituição de Medina foi um documento assinado entre Profeta Muhammad (como representante dos muçulmanos) e chefes de tribos árabes politeístas e judaicas entre 622 e 624 – cerca de 14 anos depois do surgimento do Islã. O documento é um dos raros que reuniu árabes em torno de uma identidade superior às identidades tribais.

Com base no documento, o profeta Muhammad foi eleito como chefe da cidade-estado de Medina. Nela, ele regeu por 10 anos com as regras estabelecidas pela Constituição em questão. Por isso, antes de mais nada, a pluralidade religiosa foi respeitada e essa diversidade foi um cimento na construção de uma civilização.

Quando falamos da democracia, um conceito fundante nos vem à mente: os direitos humanos, principalmente liberdades básicas. Em se tratando do respeito à pluralidade religiosa, os cidadãos da cidade-estado de Medina tiveram suas plenas liberdades de expressão e religiosa asseguradas. Não digo isso por ser muçulmano, mas por ser alguém que pesquisou o documento, principalmente por meio dos textos de autores orientalistas. O ambiente de liberdade que levou liberdade e paz para a cidade de Medina não era vista e vivida por quase um milênio na Arábia.

Portanto, a alegação dos grupos fundamentalistas de que o Islã não é compatível com a democracia é extremamente vaga e demonstra uma ignorância enorme, pois a democracia, diferente do que eles pensam, não tira a soberania de Deus. Se fosse isso, nem seria deus essa entidade que é tão facilmente revogada. Democracia é reconhecer a dignidade de opção que Deus deu ao ser humano, algo que encontra-se no quinto pilar da fé islâmica: a crença no predestino e no livre arbítrio humano. Vamos pensar no contrário disso, ou seja, na possibilidade de alguém reinar supostamente em nome de Deus e decidir por outros tirando deles o que Deus lhes deu. Isso, sem sombra de dúvidas, é uma auto-idolatria. Ou seja, é se colocar no mesmo patamar que Deus.

Por isso, mais uma vez, digo: Islã e democracia são compatíveis. Inclusive, como falou Sheikh Muhammad al-Bukai, em uma palestra que fizemos juntos na última semana, Islã é uma religião laica, pois reconhece o direito do ser humano de decidir pelo que fazer negando qualquer tipo de imposição (Alcorão 2:156).

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