Diálogos da Fé

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A sharia não é lei islâmica

Quero conversar com vocês a respeito deste conceito, que é tão mal compreendido pelo ocidente quanto pelos próprios muçulmanos

Imagem de Richard Mcall por Pixabay
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Em abril, os EUA anunciaram que retirariam suas tropas do Afeganistão, país onde a presença e influência americanas perduram há mais de 20 anos. Nas últimas semanas, acompanhamos a tomada do Afeganistão pelas forças do Talibã de forma muito veloz e abrupta. O Talibã, que no passado foi apoiado pelo Paquistão e teve auxílio dos EUA contra a ocupação soviética, dominou o país por um tempo. Após os ataques do 11 de Setembro, o país foi invadido pelos EUA e seus aliados sob acusações de que o Talibã tolerava os grupos terroristas como Al-Qaeda. 

Após a saída dos EUA e retomada do Afeganistão pelo Talibã, algumas questões ocuparam as discussões, entre elas o fato de o grupo ser fundamentalista e querer aplicar a lei de sharia.

Por isso, quero conversar com vocês a respeito deste conceito, que é tão mal compreendido pelo ocidente quanto pelos próprios muçulmanos. 

Primeiramente, a definição etimológica do conceito de sharia se encontra em árabe na palavra shar’ que literalmente pode ser traduzido como caminho, rua e linha. Na antiguidade árabe, esta palavra significava o caminho que leva para a fonte de água – que para quem vive no deserto, a água é fonte de vida. Depois do surgimento histórico do islã na arábia, este termo foi empregado no Alcorão como sinônimo da palavra dïn que literalmente traduzimos como religião para o português, apesar de este último não ser um correspondente exato daquilo que a palavra dïn implica.

O Islã tem seus ensinamentos sobre todos os aspectos da vida humana, incluindo a economia. Isso não quer dizer, contudo, que haja ‘leis islâmicas’

No Alcorão, a palavra sharia apareceu em cinco passagens diferentes em diferentes formatos. Para quem não tem conhecimento sobre a língua árabe, que é língua litúrgica do islã, uma palavra composta de três letras pode aparecer em mais de 60 formas diferentes e até com significados diferentes. Por isso dizemos que tal palavra aparece em N formas diferentes no Alcorão ou em algum texto. Felizmente, o uso dos derivados da palavra sharia aparece com sentidos próximos e semelhantes. Desta forma, a sua interpretação também é facilitada para que indivíduos em diferentes épocas possam entender melhor.


Porém, no decorrer da história, houve algumas mudanças semânticas no que tange aos sentidos da palavra sharia. Uma destas mudanças foi a colocação de sharia como sinônimo de lei (qanun) nos estudos da jurisprudência islâmica. Isto derivou pelo fato de os estudiosos de jurisprudência – fiqh – terem determinado algumas leis através dos princípios básicos do Islã em relação a vida social dos muçulmanos. O problema começou quando as leis preparadas e propostas pelo ser humano foi colocada como “a lei divina” apesar de no Islã não haver esta concepção. 

Qualquer prática que tenha a ver com a religião islâmica deve ocorrer através da livre vontade, pois o contrário é hipocrisia, o que o Alcorão abomina

O Islã tem ensinamentos sobre todos os aspectos da vida humana, incluindo a economia. Isso não quer dizer, porém, que haja “leis islâmicas”. O que pode haver, como disse Sheikh Muhammad al-Bukai em demasiadas ocasiões, são princípios de governança que um muçulmano deve seguir quando assume algum papel de liderança. O exemplo mais claro disso é a prática do profeta Muhammad entre 622 e 632 com base na Constituição de Medina, mas não necessariamente no Alcorão.

Como disse Fethullah Gulen – um estudioso turco que vive nos EUA – em um artigo publicado no jornal francês Le Monde em 2019, aquilo que se chama lei compõe apenas de 5 a 10% da sharia (aqui a tradução do artigo). Esta parcela da sharia é interpretável de acordo com a conjuntura do período em que se vive e não é necessariamente uma lei islâmica ou do Alcorão.

Todavia, posso dizer, enquanto um muçulmano, que a sharia não é lei islâmica. Esta palavra é o sinônimo da palavra Islã. Ela é o sinônimo da religião e, de acordo com o próprio Alcorão (2:257), deve ser vivida com livre e espontânea vontade de cada indivíduo que tenha conhecimento a respeito.

Portanto, como enfatizei no artigo da semana passada, qualquer prática que tenha a ver com a religião islâmica deve ocorrer através da livre vontade, pois o contrário é hipocrisia, o que o Alcorão abomina. Por isso, a volta de grupos extremistas no Oriente Médio não significa o retorno da sharia. Até porque estes grupos agem de forma contrária à própria sharia

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