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O feiticeiro e sua magia na era da cultura do cancelamento

Cancelar vai muito além das atitudes de uma comunidade para interromper o apoio a uma figura pública

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Referência fundamental nas Ciências Sociais, o livro Antropologia Estrutural é provavelmente a obra mais importante de Claude Lévi-Strauss. Uma coletânea de ensaios na qual o autor passeia entre arte, linguística, psicanálise, possibilitando um entendimento mais profundo dos conteúdos simbólicos de cada cultura. Da magia ao sistema de parentesco, do modo de pensar humano à mitologia, os pares de oposição são a peça-chave para entender como as sociedades se organizam.

O desafio de refletir sobre essa tal “cultura do cancelamento” me fez lembrar este texto clássico, talvez o meu preferido na obra de Lévi-Strauss e na Antropologia: O Feiticeiro e sua Magia, sobretudo no que diz respeito aos “mecanismos psicossociológicos subjacentes aos casos de morte por conjuração ou feitiço”. Digo isso porque essa prática de cancelar me sugere uma espécie de maldição, uma morte simbólica que considera a negação do sujeito ao tentar destituí-lo de sua força e invalidar suas ações.

Cada vez mais implacáveis, as redes sociais têm condenado não só empresas, marcas, produtos, canais e programas de tevê, mas também figuras públicas, celebridades e artistas sempre que uma atitude ou opinião diante de um assunto polêmico não coaduna com aquilo que é considerado politicamente correto ou soa ofensivo, preconceituoso ou discriminatório.

Até aqui, tudo bem. De fato, uma instituição ou um negócio, uma cantora ou ator famoso, um político ou empresário deve cuidar de sua imagem e conduta e agir com um mínimo de responsabilidade. Nesse contexto, boicote a organizações e pessoas públicas por meio do cancelamento até me parece justo e adequado, especialmente em casos de declarações e comportamentos racistas, misóginos, machistas, transfóbicos ou homofóbicos. Minha questão é sobre quem realmente é afetado por essa cultura, principalmente quando informações falsas ou duvidosas comprometem uma carreira e uma vida.

Na chamada era digital, nessa sociedade de consumo em que vivemos, a magia de se transformar em celebridade da noite para o dia vem acompanhada de inúmeros corolários. Disputas interpessoais, veladas e declaradas, invejas e competições acirradas por espaço e visibilidade, tudo isso gera conluios e inimizades. Um mundo onde as individualidades se exacerbam e, na impossibilidade de conviver, o cancelamento do outro torna-se uma prática comum a estabelecer os novos tipos de relações sociais.

No referido texto, Lévi-Strauss nos conta que “um indivíduo consciente de que é objeto de um malefício fica profundamente convencido, pelas tradições mais solenes de seu grupo, de que está condenado, e parentes e amigos compartilham a certeza”. Independentemente do ato de boicotar uma celebridade, o que se tem de concreto é que o cancelamento não é um fenômeno recente e que tem funcionado muito bem e desde sempre com pessoas pertencentes a grupos vulneráveis e minoritários, inclusive artistas.

 

Apagamento, esquecimento e invisibilidade tornaram muitas figuras execráveis. Quem conhece um pouco da história do cantor Wilson Simonal sabe bem que o cancelamento já vem sendo usado como estratégia de morte de potências há bastante tempo. Dada a estrutura social e a naturalização da desigualdade, que se somam aos interesses pontuais em relação a não ascensão de talentos promissores e/ou revolucionários, sobretudo os ligados às culturas minoritárias, os poderes instituídos sempre agem para eliminar (às vezes literalmente) aqueles que o ameaçam.

Como a estrutura se reflete no indivíduo, as guerras pessoais são estimuladas e a ação dos haters acaba excluindo da vida social aqueles que foram condenados a morrer virtualmente ao ver sua produção negada, reduzida ou contestada. Nas palavras de Lévi-Strauss, “a integridade física não resiste à dissolução da personalidade social”. A morte simbólica desemboca, inevitavelmente, numa morte real. Ver um trabalho intelectual como o de Neusa Santos Souza e a potência de meninas e meninos negros universitários se acabar com um salto para a eternidade me faz pensar naqueles que já não encontram lugar neste mundo porque passaram a vida inteira lidando com o cancelamento.

Não venham me dizer, portanto, que o ato de cancelar alguém só se aplica a figuras públicas que tenham feito ou dito algo considerado condenável, ofensivo ou preconceituoso. A rigor, o consagrado artista ou personalidade, do cinema, da música, da televisão ou da política, desde que faça parte do establishment, não morre nem deixa de exercer seu ofício, como nos mostram os exemplos de William Waack e daquele que se elegeu presidente da República.

Cancelar vai muito além das atitudes de uma comunidade para interromper o apoio a uma figura pública. Quantos agiram de forma socialmente ou moralmente inaceitável e, apesar de todas as reações, seguem como se nada acontecera? Um contrato ou outro suspenso, um convite desfeito, um protesto aqui e ali. Passa o tempo e ninguém mais se lembra. Contudo, existem os que não merecem perdão, os que de fato morrerão no limbo do esquecimento, amaldiçoados como convém aos que ousaram não ficar em seus devidos lugares. Quem tem colhido os malefícios práticos do cancelamento? Só os que foram condenados à invisibilidade e à margem.

Pra mim, a melhor definição de cancelamento está lá, bem no início do texto O Feiticeiro e sua Magia, numa síntese que fala de relações sociais arraigadas e praticadas desde sempre. A partir do momento em que “a comunidade se retrai, todos se afastam do maldito e se comportam com ele como se, além de já estar morto, representasse uma fonte de perigo para todos os que o cercam. Em toda ocasião e em cada um de seus gestos, o corpo social sugere a morte à pobre vítima, que não tenta escapar do que considera ser seu inelutável destino.” Nessa estrutura racista, classista e elitista em que se funda a sociedade brasileira, sabemos bem quem são os condenados.

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