Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

O aborto e as mulheres evangélicas

Precisamos, neste momento, abrir intenso diálogo com a população brasileira sobre tema

Relatores. Rosa Weber deve pautar o aborto antes de outubro. Edson Fachin deu voz ao movimento negro em caso de racismo policial - Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR
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Não é segredo para ninguém que a bancada parlamentar brasileira mais ativa contra a legalização do aborto é a bancada cristã (compreendida aqui como católicos, evangélicos e kardecistas). Esses parlamentares têm se tornado fiéis da balança em muitas votações importantes para as bancadas declaradamente anti-direitos das minorias sociais – como a bancada do Boi, da Bala, dos Bancos etc.

Não demorou muito para que, nesta legislatura, fosse instaurada a Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e em Defesa da Vida, ocorrida no dia 6 de fevereiro, a pedido da deputada católica Chris Tonietto (PL-RJ). Esse grupo de parlamentares espalha mentiras sobre o procedimento de interrupção de gestação e, com um teor altamente moralizante, ignoram o real problema do aborto no Brasil – a falta de informação e acesso aos métodos conceptivos de qualidade, a execução deficitária da Lei de Planejamento Familiar (Lei Nº 9.263), a falta de educação sexual nas escolas e, sobretudo, a violência sexual. 

Desonestamente, o grupo antiaborto pouco fala a respeito de como as mulheres pobres, de maioria negra, morrem por faze este procedimento de forma insegura. A falácia da defesa da vida cai por terra no momento em que a vida de crianças grávidas não valem nada.

Não podemos esquecer que foi esse grupo, sobre a égide da ministra da Mulher,  Família e Direitos Humanos Damares Alves, de 2019 a 2022, que chamou a menina capixaba de dez anos de assassina, ou ainda apoiou a juíza catarinense que disse que uma menina de dez anos deveria esperar mais um pouquinho, ao inves de garantir imediatamente o aborto legal e salvar a vida da menina que corria risco. 

Neste caso ainda, a deputada estadual Ana Campagnolo (PL-SC) fez o requerimento de uma CPI do Aborto, aceita e instaurada pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina, cujo objetivo era investigar a atuação dos profissionais de saúde que garantiram o aborto da menina catarinense. 

No Estado do Mato Grosso acaba de ser instaurada (só com homens) a Frente Parlamentar de Combate ao Aborto “Pró-Vida”, sob a presidência do deputado estadual Cláudio Ferreira (PTB) que afirmou, na audiência de instalação da frente, que “existem horas que a vida exige mais que a legalidade, mas o desenvolvimento moral e a moralidade (sic)”.

Ora, é inegável a militância antiaborto dos parlamentares terrivelmente cristãos, e este debate vai esquentar neste momento político no qual estamos. A ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber, no ano de sua aposentadoria, resolveu julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ação proposta pelo PSOL cuja intenção é reparar o prejuízo de milhares de mulheres brasileiras que são criminalizadas por interromperem uma gestação. Essa ação tem por objetivo descriminalizar o aborto com consentimento da gestante até o terceiro mês de gestação.

Este aceno de Rosa Weber pode causar uma verdadeira reação em cadeia dos fundamentalistas que dizem “representar a população cristã do Brasil”. Precisamos, neste momento, abrir intenso diálogo com a população brasileira sobre tema, até porque a Pesquisa Nacional do Aborto,  de 2016, coordenada pela antropóloga Débora Diniz, mostra que, das mulheres que abortam no Brasil, 25% são evangélicas e 56% são católicas. 

O que entendemos disso é que o aborto é um acontecimento muito mais comum dentro das igrejas do que querem admitir os fundamentalistas. Embora a bancada cristã já tenha instalado suas frentes “contra o aborto”, seja no Congresso Nacional, seja nas Assembleias Legislativas, e esteja disposta a destilar todo o ódio contra as mulheres, seus corpos e seu direito de decidir, a realidade dentro das igrejas não é tão homegênea. Dentro das igrejas, mulheres abortam, e isto deve ser levado em consideração quando estamos disputando as narrativas sobre o direito de decidir.  

No final das contas, as mulheres religiosas não deixam de abortar porque é um pecado. Existem muitas questões envolvidas nesta escolha, e esta narrativa religiosa só faz colocar um peso enorme nas costas das mulheres brasileiras que abortam ou enfrentam esse dilema. Para mim, existem nos contextos religiosos três tipos de criminalização social do aborto:

  1. do aborto voluntario: essa mulher é julgada por agir contra a “vontade de Deus”, como se ela fosse irresponsável por se relacionar sexualmente e não assumir as consequencias. Geralmente, essa mulher vai receber dupla punição, a da religião e o peso da culpa de ter interrompido a gestação, além de ter medo de ser denunciada e presa, haja vista o código penal brasileiro que criminaliza mulheres que abortam voluntariamente.  
  2. do aborto legal: quando a  mulher é vítima de abuso, está em risco materno ou o feto é anencéfalo, e decide abortar de forma legal, ela é julgada pela falta de fé e por não “carregar a sua cruz”. Ou seja, se Deus permitiu aquela situação é porque Ele queria que aquela vida viesse ao mundo, e a mulher deveria ter mais fé. Imediatamente ela tem sua fé questionada e se sente “menos crente” e muitas vezes se afasta da comunidade no momento em que mais precisa de apoio.
  3. do aborto espontâneo: embora a mulher não tenha o mínimo controle desta situação, o aborto é um tabu tão grande que essas mulheres não são acolhidas em seu luto. Imediatamente alguém vai orar para ela engravidar de novo, vai dizer que ela precisa ter mais fé para que consiga ter o desejado filho e, a reboque de toda criminalizaçao do aborto, ela acaba sendo criminalizada, também. Os relatos de mulheres que abortam espontaneamente em comunidades religiosas são extremamente dolorosos. Não se sentem acolhidas, e muitas vezes se sentem culpadas por não serem capazes de “segurar” o bebê. E quanto mais religiosa a mulher for, mais peso, culpa e dor ela carregará por conta das posturas fundamentalistas em relação ao aborto.

O que temos que ter em mente é que as mulheres são criminalizadas a todo momento por um acontecimento comum na vida reprodutiva delas. E precisamos falar sobre esse tema de modo que o aborto seja legalizado e, sobretudo, a criminalizaçao social do aborto seja superada, no Brasil. Eu vejo que temos avançado em passos largos, graça ao movimento feminista que incessantemente coloca a questão como pauta de saúde púiblica e não de prisão. 

Para minha grata surpresa, a novela “Vai na Fé”, da Rede Globo, deu um exemplo de como podemos naturalizar esta discussão. A novela tem atraído o segmento evangélico dos telespectadores, justamente por tratar de forma humanizada as personagens deste grupo religioso, sem aquela caracterização debochada e arquetípica do “evangélico fundamentalista” rígido nas pautas da moral e dos costumes. Demonstrando as pessoas evangélicas com suas contradições, diversidade e perrengues da vida cotidiana, a novela abriu um importante canal de diálogo com as mulheres evangélicas. Na personagem de Sol (pela atriz Sjeron Menezzes), mulher negra evangélica que vive seus dilemas e dificuldades, a novela abre todo um debate sobre o sistema patriarcal das igrejas.

Na última semana, nos episódios dos dias 1 e 2 de junho  a advogada Lumiar, interpretada pela atriz Carolina Dieckmann, faz a defesa de uma mulher que teve o aborto legal inviabilizado pelo poder público, após ser estuprada. Talita, a vítima, personagem da novela, ao buscar o serviço de aborto legal, tem seu direto tolhido. A advogada faz um discurso intenso e importante na defesa do direito de Talita, e de todas as mulheres que passam por esta situação. O conflito religioso apresentado pela filha de Sol, Jennifer (Bella Campos), é rebatido com informações corretas e com respaldo legal – como deve sempre ser encaminhada essa questão, sem a moralização tão presente no meio evangélico. 

O fato é: o aborto acontece, e vai seguir acontecendo. Nas igrejas, nas escolas, nas universidades, nas empresas e em todos os lugares onde tiver pessoas que engravidam, o aborto será uma pauta de saúde pública. É nossa tarefa humanizar a mulher que aborta, pois ninguém é a favor do aborto, que de fato é um trauma na vida da mulher. Porém, não ser a favor, não faz com que ele não aconteça. Informação sobre direitos sexuais e reprodutivos e acolhimento às mulheres é a tarefa do poder público e de toda sociedade. A criminalização do aborto é, na verdade, a criminalização das mulheres e suas escolhas. 

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