Diálogos da Fé

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Não há direitos das mulheres sem justiça reprodutiva

Pensar em justiça reprodutiva é considerar que as mulheres não são apenas aquelas que irão gestar, parir e criar crianças. É considerar que as mulheres devem escolher

Ato a favor da descriminalização do aborto em Santiago, em janeiro de 2022. Foto: Claudio Reyes/AFP
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A vida das mulheres nunca esteve tão ameaçada quanto nos últimos quatro anos. O governo Bolsonaro, na figura da ministra Damares Alves, promoveu uma série de ataques às mulheres e meninas brasileiras. 

Recordo, aqui, o caso da menina do Espírito Santo que teve seus dados vazados pelo MMFDH. Com essa movimentação vinda diretamente do poder executivo federal, a menina foi recebida aos brados de “assassina” por uma horda de pastores evangélicos na frente do hospital, onde passaria por uma interrupção de gestação garantida em lei. 

Lembramos, ainda, da menina de 11 anos de Santa Catarina, que, em uma audiência judicial, expressava nitidamente que não desejava prosseguir com a gestação fruto de estupro, mas ouviu “aguenta mais um pouquinho” da juíza. 

No final da legislatura 2019-2022, fundamentalistas religiosos (católicos e evangélicos) ressuscitaram a pauta do Estatuto do Nascituro, no qual é sistematizada um série de ataques ao aborto previsto em lei – caso de anencefalia, risco de vida à pessoas gestante e estupro. O projeto prejudica estudos para cura de doenças como Alzheimer e Parkinson, além de dificultar o acesso à reprodução assisitida.

Há ainda o caso da menina de 12 anos do Piauí, grávida pela segunda vez, vítima de estupro, que enfrenta uma luta para que possa ter acesso à interrupção de gestação a que tem direito. Ora, a juíza do caso, implementando o Estatuto do Nascituro antes mesmo de ser aprovado, estabeleceu um curador ao feto, criando uma disputa jurídica entre a menina, já aviltada pelo abusador, e o fruto do abuso, a gestação. 

São muitos relatos de dificuldade para se colocar DIU nas UBSs, de acessar educação sexual e reprodutiva nas escolas (lembram-se da cena grotesca de Bolsonaro rasgando as páginas da cartilha do adolescente sobre educação sexual e de gênero?), de violência obstétrica, dentre outros que envolvem a vida sexual e reprodutiva das mulheres.

Não basta, contudo, discutirmos apenas a decisão de engravidar ou não engravidar. As feministas negras quebram paradigmas quando trazem para o centro do debate a Justiça Reprodutiva, afirmando que não existem direitos sexuais e reprodutivos sem justiça social.

Justiça reprodutiva é a visão ampliada de que o direito ao próprio corpo passa pelo acesso às garantias sociais fundamentais para si e, consequentemente, para seus filhos. Afinal, em um país em que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, quem zela pelo direito dessas mães de verem seus filhos crescerem? Quando assistimos, estarrecidos, aos ataques que o governo Bolsonaro promoveu sobre os direitos dos yanomamis, vimos a crueldade a que as mulheres indígenas foram submetidas. Gestações fruto de estupro, Infecções Sexualmente Transmissívei  e desnutrição de si e de seus filhos.

Pensar justiça reprodutiva, então, é considerar que as mulheres não são apenas aquelas que irão gestar, parir e criar crianças. Pensar justiça reprodutiva é considerar que as mulheres devem escolher se irão gestar ou não; e quando decidirem parir, que tenham condições dignas de criar as crianças. 

Além disso, justiça reprodutiva é sobre a coletivização do trabalho do cuidado. É responsabilizar os genitores sobre suas obrigações com as crianças. E não só isso, é também questionar a sociedade sobre a sua obrigação social com as infâncias. 

Cobra-se que mulheres alimentem, eduquem, vistam e deem conta sozinhas de um cuidado que, na verdade, deve ser coletivo. Escolas de qualidade, segurança alimentar, acesso à saúde, à cultura, à segurança não deve ser um dever das mães, mas uma garantia fundamental da pessoa humana – ainda que criança -, como versa a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a nossa Constituição.

Este é um desafio de todas as pessoas, de toda a sociedade. Parlamentares devem ser pressionados para que promovam a Justiça Reprodutiva no parlamento, a sociedade civil organizada deve incidir sobre este tema, em todos os espaços de poder. Não devemos romantizar a maternidade e tão pouco acreditar que esse tema não diz respeito ao conjunto de poderes brasileiros. 

Os fundamentalistas religiosos que todos os dias atacam os direitos das mulheres, como o governo Bolsonaro demonstrou por sua cartilha extremista, malignamente, articulam uma “defesa da vida” do feto. Eles não levam em consideração a qualidade de vida de quem gesta e muito menos com o cuidado que esta criança deverá receber ao nascer. 

Por fim, são as mulheres negras e indígenas as que mais sofrem com essa narrativa. São nossos filhos que morrem de balas perdidas, que caem das sacadas dos apartamentos das sinhás modernas, que vivem com a desnutrição e com o genocídio em curso, no Brasil.

Portanto, não haverá direitos das mulheres, no Brasil, se não houver justiça reprodutiva para todas as (diversas) mulheres! 

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