Diálogos da Fé

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Documento de evangélicos diz defender a vida. Será?!

À medida que eu lia o documento, vieram à minha mente os rostos das crianças mortas no Rio de Janeiro por armas de fogo neste ano de 2023

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Há alguns dias, recebi uma cópia da nota redigida por uma associação de juristas identificada com o segmento evangélico. O texto, assinado também por 40 pastores líderes de associações (como a Frente Parlamentar Evangélica, a Aliança Evangélica Brasileira e conselhos de pastores), convenções de igrejas, organizações missionárias, e igrejas em nível nacional ou local, trata da “proteção do direito à vida”.

O objetivo é pressionar o Supremo Tribunal Federal contra a aprovação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 (ADPF 442), que trata da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, prestes a ser colocada em pauta para julgamento.

Em vários trechos, a associação de juristas e os 40 signatários, todos homens (!), falam de “proteção à vida”, da vida humana como “dádiva divina”, contra a “cultura de morte”, com foco na sobrevivência de embriões, fetos, futuros bebês e crianças.

À medida que eu lia o documento, vieram à minha mente os rostos das crianças mortas no Rio de Janeiro por armas de fogo neste ano de 2023: foram dez registros até esta data, meninos e meninas com idade entre nove e 13 anos. Todas as vidas foram interrompidas de forma repentina e violenta, enquanto viviam seu cotidiano. Quase todas atingidas por armas de agentes do Estado que deveriam protegê-las. Todas eram negras e de áreas periféricas da cidade. 

Lembrei-me ainda das crianças baleadas que sobreviveram: seis, até o momento em que este artigo é redigido. Além de marcas nos corpos, pensei nos traumas terríveis que acompanharão suas vidas e as de suas famílias.

No mês passado, ao ler uma nota da plataforma Fogo Cruzado e o jornal A Voz das Comunidades clamando por mais responsabilidade com a vida (“Impressiona que tantas crianças sejam vítimas da violência armada e ainda não haja um esforço nas esferas municipal, estadual e federal para interromper essa tragédia”), imediatamente, procurei manifestações da associação dos juristas que divulgou o documento contra o aborto – e também dos 40 homens pastores e suas associações, convenções e igrejas que o assinaram. Não encontrei uma palavra sequer sobre as crianças mortas no Rio, ou em São Paulo, no Sul do país, ou no Norte e no Nordeste. Nada!

Vidas de crianças perdidas por violência, infelizmente, não são exclusividade do Rio de Janeiro. Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Unicef, divulgada em 2021, já alertava que sete mil crianças e adolescentes eram mortos por ano no Brasil, de forma violenta. Naquele ano, as mortes daquelas que tinham até quatro anos aumentaram em 27%.

Lamentavelmente, esses números só crescem de 2020 para cá. Afinal, a circulação de armas nas mãos de pessoas comuns no Brasil foi incrementada pelo governo federal anterior, os dados sobre (in)segurança pública indicam altos registros de letalidade policial nas grandes cidades, e a violência no campo se intensificou.

São casos como o do menino Jonatas, de 9 anos, executado em fevereiro por sete jagunços que atacaram a casa de seu pai, presidente da Associação dos Agricultores Familiares do município de Barreiros, na Zona da Mata de Pernambuco. Primeiro, os homens encapuzados alvejaram o homem, que sobreviveu. Em seguida, atiraram contra a criança, que se escondia debaixo da cama com a mãe.

Em junho passado, uma menina indígena de 7 anos foi morta e outras duas ficaram feridas, junto com adultas, durante um ataque a tiros na comunidade Parima, na Terra Yanomami. É frequente que crianças sejam mortas após serem estupradas por garimpeiros em terras indígenas.

Jonatas e a menina Yanomami são dois entre tantos filhos e filhas de agricultores e de indígenas que perdem a vida por violência relacionada à posse de terra ou ao trabalho nela.

Defender a “proteção à vida” e a “defesa da vida” sem oferecer uma palavra sequer de denúncia e consolo às famílias destruídas pela morte cruel imposta a crianças, expostas diariamente no noticiário, têm tom de escárnio. Sim, o artigo está terminado. Nada mais a dizer!

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