Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

Em memória do pastor de esquerda que resistiu à ditadura e se tornou um bispo fiel aos princípios cristãos

A liderança evangélica de Paulo Ayres deixa legado e joga por terra a falácia espalhada nestas eleições de que cristãos não podem ser de esquerda

Foto: WEBTV-EST
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Em meio ao turbilhão que tomou o Brasil neste processo eleitoral, o cenário evangélico no Brasil perdeu um importante ator: o bispo emérito da Igreja Metodista Paulo Ayres Mattos, falecido aos 81 anos, no último 16 de outubro, por problemas cardíacos.

Se alguém não sabe quem é o bispo Paulo Ayres Mattos, precisa corrigir isto, para ampliar o conhecimento sobre o lado evangélico no Brasil marcado pelo compromisso com os valores cristãos!

É fato que há uma ampla parcela de evangélicos visíveis nas mídias, líderes de grandes corporações religiosas, também artistas do mercado gospel e youtubers dos milhões de cliques, que acabam criando uma imagem obscura do que é ser evangélico no Brasil e silencia uma história que remonta ao século 19 no Brasil. Isto só serve para apagar uma memória muito significativa e geradora de esperança para estes tempos terríveis que vivemos.

Por isso hoje, este espaço é dedicado ao bispo Paulo Ayres Mattos, mais um que se soma ao grupo de “evangélicos raiz”. Como já fiz em outro artigo, recorro ao jogo de palavras da moda que afirma “raiz” ser o gosto autêntico, o profundo, enquanto “Nutella”, marca de um creme de avelãs, representa o artificial, o raso.

“Metodista por opção, ecumênico por convicção e pentecostal por vocação”: assim se identificava Paulo Ayres, pastor que se tornou bispo desta importante igreja protestante história, a Metodista, em 1979. Teve a trajetória marcada por engajamento no movimento ecumênico e por estudo e diálogo com pentecostais.

Figura carismática, de postura firme, era filho de um ex-militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e ex-preso político, que se converteu ao metodismo na primeira metade do século 20. Líder da juventude da igreja, em 1962, Paulo Ayres ingressou na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, em São Bernardo do Campo (SP), para se tornar um pastor. No período de estudante seguiu os passos do pai e fez parte de uma célula da juventude do PCB. Isto o impediu de assumir a direção da Juventude Nacional Metodista. Como tinha liderança reconhecida e os cabeças da igreja não o desejavam no cargo, foi enviado, em 1966, para estudos em Chicago (EUA) com uma bolsa de estudos.

De volta ao Brasil, quando pastor no Rio de Janeiro, na virada dos anos 60 e nos 70, foi uma das vozes mais resistentes ao fechamento da Faculdade de Teologia, de São Bernardo do Campo, com a perseguição política promovida pela Igreja Metodista, em 1968. Foi então enviado pelo bispo do Rio para longe da capital, Cabo Frio. Porém, mesmo afastado das articulações mais centrais, não ficou isolado, se engajou na resistência à ditadura com lideranças locais e deu abrigo a perseguidos.

Nesse período, Paulo Ayres se engajou no movimento ecumênico e passou a colaborar com o importante Centro Ecumênico de Informação (CEI), criado por líderes remanescentes da Confederação Evangélica do Brasil (CEB). Uniu-se ali a Jether Ramalho, Waldo César, Carlos Cunha, Domício de Mattos, entre outros, no enfrentamento da ditadura militar que fechou a CEB.

Foi denunciado por colegas (um deles chegou a ser capelão do Exército), e por ordem do Serviço Nacional de Informações (SNI), perdeu três empregos como professor, um deles no Instituto Metodista Bennett.

Sua perseverança, firmeza de convicções, coragem e responsabilidade o mantiveram no compromisso de fé com a democracia. No final de 1973, trabalhou no apoio a refugiados da ditadura militar no Chile, que se abrigaram temporariamente no Brasil. Em fevereiro de 1974, quando se tornou pastor no Grande Rio (Niterói), assumiu a secretaria executiva do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), organização nascida do aprofundamento do CEI.

Com liderança e compromissos com a igreja reconhecidos, Paulo Ayres foi eleito bispo, em 1979. eleito bispo. Logo no início, ele representou a Igreja Metodista na destacada Conferência Latino-Americana dos Bispos Católicos, em Puebla, no México. Dedicou-se ao episcopado da Igreja por 20 anos, tendo sido eleito, em 1987,  o primeiro bispo da nova Região Missionária Metodista no Nordeste.

Em Recife estabeleceu relações ecumênicas, tendo se tornado presidente da organização Diaconia, e estabeleceu parcerias com então o Arcebispo da Igreja Católica naquela cidade, Dom Helder Câmara. Foi membro do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas e atuou, pelo Concílio Mundial Metodista, na Comissão Mista Metodista-Católica.

Ao decidir se aposentar como bispo, em 1997, aos 57 anos, dedicou sua vida à militância ecumênica e aos estudos. Seguiu como presidente da Diaconia e, também, de Koinonia Presença Ecumênica e Serviço (organização herdeira do CEI e do CEDI) até pouco tempo atrás. Conquistou o título de doutor em Teologia pela Drew University, com estudos sobre o pentecostalismo brasileiro, tendo sido professor da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo e se tornado membro da Rede Latino-Americana de Estudos Pentecostais (RELEP). Atuava, mais recentemente, como professor pesquisador da Faculdade de Teologia Refidim (vinculada às Assembleias de Deus), em Joinville (SC).

Sua liderança evangélica foi marcada pela dimensão protestante, da defesa das convicções e posicionamento firme, ético e coerente com o que entendia que deveria ser a igreja. Em entrevista à jornalista Beatriz Vicentini disse: “Em 1989, quando manifestei meu apoio a Lula, nas eleições presidenciais, fui muito criticado. Cheguei a receber uma carta exigindo que eu pedisse perdão a Deus. Nunca escondi a minha simpatia ao Partido dos Trabalhadores, em que pesem divergências enormes. Mas como bispo eu não poderia me vincular a nenhum partido político. É possível que agora, ao deixar o episcopado (ativo), minha relação com o PT se torne mais próxima. Pessoalmente, se não fosse o cargo, eu teria me filiado a ele” (Entrevista publicada pelo jornal Acontece, da Universidade Metodista de Piracicaba/UNIMEP, novembro de 1997).

Beatriz Vicentini, avalia hoje: “talvez seja ele dos últimos de uma geração de bispos que deram à Igreja consistência e dignidade exigidas por uma denominação religiosa coerente. Paulo Ayres foi a síntese da voz firme, corajosa, franca, muitas vezes beligerante e polêmica, mas de uma integridade ímpar, durante seus anos de episcopado. (…)  Como o respeitaram e o admiraram membros de outras religiões, em organismos internacionais e ecumênicos, não apenas como pastor e bispo, mas como professor e pesquisador, e em uma militância também reconhecida por movimentos políticos e sociais neste país.  Nos últimos anos, decepcionado com a Igreja Metodista, foi se afastando dela e ampliando seus estudos sobre a teologia pentecostal”.

A passagem do Bispo Paulo Ayres Mattos deixa uma lacuna enorme no metodismo e no cenário evangélico brasileiro, que vive um momento delicado nos campos da ética, da responsabilidade e dos valores cristãos ! A vida deste líder evangélico joga por terra a falácia espalhada nestas eleições de que cristãos não podem ser de esquerda. Pelo contrário! Sua memória é herança importante para animar o compromisso dos “evangélicos raiz”, mesmo com tantos “evangélicos nutela” espalhando desesperança no ar!

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