Diálogos da Fé

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É possível ser católica sem dizer amém?

‘Não há contradição entre a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, ou de modo mais amplo dos Direitos Humanos, e o projeto de Jesus’

Igreja Católica
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Gisele Cristina Pereira*

O título que inspira nossa reflexão também animou o surgimento do nosso projeto “Café Teológico”, que estreou no dia 26 de outubro com a participação da querida companheira e teóloga Ivone Gebara. O questionamento não poderia ser mais adequado ao contexto de fundamentalismos e novas cruzadas conservadoras.

Com sua costumeira sabedoria e lucidez, Ivone nos conduziu pelo caminho da interrogação sobre “ideias” a respeito do catolicismo que se apresentam como verdadeiras, definitivas, inquestionáveis. Onde querem impor “verdades”, desde a teologia feminista levantamos suspeitas.

Mal sabíamos que, no dia seguinte, seríamos surpreendidas com a publicação do acórdão sobre a ação judicial movida sob tais concepções de verdade. Não fosse realizada um dia antes do acórdão, a live poderia ser considerada uma resposta àqueles que apresentaram a ação, assim como aos que com ela assentem. Por isso, sem a pretensão de reproduzir a riqueza de suas análises, trazemos alguns pontos levantados por Ivone e que nos ajudam a compreender nosso lugar como fiéis ao projeto de Jesus.

Ivone invoca o direito ao dissenso a partir da ação do próprio Cristo encarnado, que questionava os poderes instituídos, que divergia de leis e concepções quando estas se impunham como opressões e injustiças. A partir do dissenso, lembra Ivone, é que se faz surgir coisas novas e, num processo dialético constante, seguirá mobilizando mudanças.

A Igreja Católica não é monolítica e homogênea. É plural com uma história milenar e marcada por muitas e significativas mudanças. Como bem lembrou nossa presidenta Maria José Rosado, a Igreja Católica, enquanto instituição, mudou em relação à inquisição e às cruzadas; se redimiu pela cumplicidade com o colonialismo, a escravidão e extermínio de povos, pelo silenciamento diante do holocausto. Mesmo quando e onde divergir era considerado crime, sempre existiram pessoas que se contrapunham àquilo que consideravam injusto e opressivo.

Também em relação ao aborto a posição sustentada oficialmente pela Igreja Católica nem sempre foi a mesma ou única em cada período histórico. Ainda hoje é tema de grandes debates no campo da moral, da teologia e da doutrina católica.

A Igreja Católica não é monolítica e homogênea. É plural com uma história milenar e marcada por muitas e significativas mudanças

Não existe uma única ou definitiva posição dentro do catolicismo a esse respeito.

O próprio Papa Francisco tem desencadeado um movimento de abertura em relação às questões relacionadas à moral sexual e reprodutiva. Ainda que limitado pelas estruturas eclesiásticas, Francisco avança ao abordar tais questões a partir da compaixão, da compreensão e da acolhida.

Na contramão dessa abertura do próprio Papa, grupos ultraconservadores tentam abafar as divergências e diversidades internas do catolicismo, assim como aquelas que estão fora dele. A partir de sua visão particular sobre a fé e o mundo, empreendem uma verdadeira “cruzada” com a finalidade de eliminar tudo aquilo que não conseguem dominar ou enquadrar.

Mas não há como eliminar a diversidade. Ela faz parte da condição humana e sempre existirá. Como diz a canção: “se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão”. Contudo, é extremamente grave o que estamos vivendo no mundo e de modo particular no Brasil, onde um pensamento moral religioso quer se impor como força de lei ao conjunto da sociedade, negando o direito à expressão e a própria existência de tudo o que lhe é diverso.

Esse direito de existir enquanto tal, que querem negar a nós, mulheres católicas feministas, é o mesmo direito negado às pessoas LGBTI+, à população negra, às famílias que não se conformam segundo suas concepções morais religiosas, às pessoas que não se deixam dominar por seus ditames. Essa eliminação simbólica legitima as diversas formas de violência e o extermínio físico.

O que fere o catolicismo e contraria a mensagem do Jesus Cristo é justamente essa cumplicidade com a violência e a inequidade; com o abuso sexual e a pedofilia cometidos por sacerdotes; a exploração econômica e a corrupção praticadas em nome da fé.

Não há contradição entre a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, ou de modo mais amplo dos Direitos Humanos, e o projeto de Jesus. Pelo contrário, é uma coerência e continuidade a esse projeto baseado na compaixão, no amor ao próximo, na solidariedade e, sobretudo, na luta pela justiça. É por essa mensagem viva que Ivone afirma que “o cristianismo também [a levou] de certa forma ao feminismo”.

Quando compreendemos a radicalidade da mensagem do Cristo encarnado, aplicada aos dias de hoje, vemos que nosso lugar é, como diz a canção, “ao lado dos pobres colhendo o que sobrou”. Em nossos dias, recolher as sobras deixadas por esse sistema de exploração, racista e patriarcal se traduz na luta pela sobrevivência material e simbólica.

Nos declararmos como aderentes à fé católica não significa dizer “amém” para tudo o que determina as hierarquias e doutrinas católicas: é fazer parte dessa comunidade de Jesus, junto a tantas outras pessoas católicas que se recusam a se submeter ao injusto.

Não somos “o modo” de ser católica, mas nos inserimos em um dos modos legítimos de vivenciar esta fé. Somos católicas desde essa comunhão que se torna “um perigo” às estruturas de opressão. Somos católicas e continuaremos afirmando à tantas outras mulheres, que é possível viver nossa fé sem estar em contradição com a defesa de nossos direitos, nossa autonomia e liberdade de consciência.

É por isso que sim, somos católicas, e como Ivone e tantas outras, “não dizemos amém para as opressões” e o silenciamento das inúmeras dores. É possível ser católica sem dizer amém. Assim o somos desde aquelas e aqueles que reivindicam este lugar como resistência e luta por um projeto de justiça, compaixão e de amor.

#somoscatolicasesomosmuitas

* Integrante de Católicas pelo Direito de Decidir

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