Diálogos da Fé

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Comunidades terapêuticas: uma ameaça fundamentalista

Não queremos religiosos oferecendo serviço que deve ser obrigação do Estado. O Estado é laico, e assim deve se manter! 

Créditos: Divulgação
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Estamos em 2023 e o desafio que temos nos  próximos quatro anos é de avançar na área dos Direitos Humanos. Foram seis anos, desde o golpe, vendo nossas conquistas históricas serem a cada dia diminuídas. E este é o momento para avançarmos. Precisamos fortalecer as Escolas e Universidades Públicas, o Sistema Único de Saúde, as políticas públicas na área de cultura, a defesa da diversidade. 

Contudo, a tarefa ainda é árdua. Setores reacionários elegeram bancadas fortes que podem atuar diuturnamente pelo desmonte das nossas conquistas, e, como se não bastasse, o fundamentalismo religioso ainda é uma grande ameaça neste contexto.

Como já escrevi  algumas vezes, eu nasci e cresci em uma comunidade evangélica periférica. Na minha opinião, um grande problema das periferias é a falta de acesso ao cuidado de saúde mental. Seja das pessoas que fazem uso abusivo de drogas ou das pessoas que têm depressão ou qualquer outro transtorno. É aí que, inevitavelmente, as igrejas acabam preenchendo essa ausência no socorro direto às famílias. 

Na maioria das vezes, o pastor e a igreja acabam sendo o principal canal de socorro. E é importante sabermos desta realidade, porque não basta apenas identificarmos o socorro inadequado que muitas igrejas oferecem, se faz necessário entender o porquê de as igrejas serem o primeiro canal de socorro. 

Não foram uma ou duas pessoas que vi sendo encaminhadas para comunidades terapêuticas religiosas. Para as famílias, elas representam um sopro de esperança. Para os adictos, uma chance de se reintegrar à sociedade. Na realidade, porém, imperam fugas, depressão e tratamentos impróprios. 

A Bíblia é apresentada como única saída, o repúdio dos “pecados do mundo”, como ferramenta de cura e cuidado. Um mar de culpa e tristeza, para salvar os “perdidos”. Quando aquelas meninas e meninos fogem das clínicas, são taxados de fracos e de pecadores. Uma angústia sem fim para as famílias e para as próprias comunidades de fé, que muitas vezes ajudam a financiar as internações. E este ciclo se repete a todo momento. Agora mesmo existem centenas de jovens nestas situações.  

Como precisamos avançar nas conquistas dos direitos humanos, as comunidades terapêuticas, hoje, representam um ataque a estes direitos. Há muitas organizações que estão na luta antimanicomial que têm muitas informações sobre o quanto as CTs são prejudiciais para a garantia dos direitos humanos.

Um relatório feito em 2017 pelo Ministério Público Federal e pelo Conselho Federal de Psicologia e do Mecanismo de Combate e Prevenção à Tortura é preciso na descrição do que se encontra em muitas CTs Brasil afora. 

Meu papel enquanto mulher evangélica que já acompanhou esse drama das CTs é dizer o quão cruel é esta realidade, e o quanto ela pode gestar um novo ovo da serpente para a democracia brasileira. A crueldade está no fato de que essas comunidades são a única ajuda que muitas famílias alcançam, mas elas não oferecerão os cuidados adequados. 

A demonização da “loucura” como forma de convencer que as pessoas precisam de exorcismos ou de aceitar uma religião para se livrarem de questões que são da ordem da saúde mental, transformam esses espaços em um capital político muito importante. E vimos, nos últimos quatro anos, que alguns segmentos evangélicos foram fundamentais para a sustentação de um discurso antidireitos e antidemocrático. Muitos destes segmentos estão no controle destas CTs. 

Ou seja, investir dinheiro público nessas instituições, ao invés de fortalecer os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e o SUS, é destinar recursos para um grupo que tem um projeto de poder muito nítido: uma sociedade sem diversidade, sem liberdades laicas e sem garantias fundamentais dos direitos humanos. 

Algumas destas comunidades já foram fechadas por tortura, por trabalho análogo à escravidão e por sessões de “cura gay”. Ora, porque investir em um projeto que pode fortalecer o fundamentalismo religioso? Como podemos fortalecer um projeto que se vale das tragédias de muitas famílias para juntar poder e capital político?

Não podemos nos enganar: o que está em jogo é evitar fortalecer um projeto de poder de segmentos evangélicos que exigem financiamento público para efetivar um modelo absurdo de saúde mental. 

Tivemos um exemplo recente do quão cruel esse tipo de ação pode ser: a ONG evangélica Missão Caiuá. Quase um bilhão de reais investidos em uma instituição religiosa que acabou com a proteção de territórios e dos povos indígenas brasileiros. A maioria das Comunidades Terapêuticas funcionam exatamente assim: não garantem um cuidado adequado para as pessoas acolhidas e ainda utilizam esses recursos para o fortalecimento de grupos religiosos que querem usar da estrutura do Estado para  a execução de um projeto político antidireitos. 

Portanto, não podemos entregar nas mãos de religiosos proselitistas recursos públicos para que sejam aplicados na contramão dos princípios da saúde pública e das políticas públicas efetivas para a população. Se faz necessário que a CTs sejam desidratadas e que os Caps sejam fortalecidos, juntamente com o SUS. A terceirização da saúde é uma tragédia que devemos evitar, sobretudo quando as organizações que recebem a tarefa de oferecer os serviços de saúde, estão na contramão da garantia de saúde de qualidade. 

A ministra da Saúde Nísia Trindade, de maneira brilhante, no último programa Roda Viva (6 de fevereiro de 2023), nos alertou sobre a luta antimanicomial e como as CTs são o reforço da lógica manicomial e enfraquecimento dos CAPs. E é exatamente isso que esperamos do novo governo: o fortalecimento do SUS e a criação de uma rede de cuidado e atenção à saúde mental juntamente com uma lógica de redução de danos quando se trata do uso de drogas. 

Da minha parte, espero que os fundamentalistas religiosos tirem as mãos do recurso da saúde mental. E de todos os recursos públicos. Não queremos religiosos oferecendo serviço que deve ser obrigação do Estado. O Estado é laico, e assim deve se manter! 

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