Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Cabe a nós lutarmos pela vitalidade da Igreja da Libertação

Continuaremos a cantar a Utopia e a animar as muitas lutas sociais para a construção do Reinado de Deus na História Humana

Imagem: iStock
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O ótimo artigo de Magali Cunha sobre a quaresma neste blog de diálogos da Fé suscitou a reflexão que aqui apresento a quem se interessa pela Fé no mundo atual.

Quaresma é o tempo que prepara as comunidades cristãs para a grande festa da Páscoa, a Ressurreição de Jesus, promessa de triunfo definitivo da vida sobre a morte. O que estamos percebendo, porém, nesta quaresma, é o triunfo da morte numa guerra na qual o povo ucraniano é sacrificado na disputa entre Rússia e OTAN pela hegemonia geopolítica. E esta não é a única guerra de nossos dias: além daquelas assim nomeadas, muitas outras guerras são feitas sem usar esse rótulo, como as investidas armadas contra povos indígenas, quilombolas, comunidades de posseiros e as populações de periferia – para referir-me apenas ao Brasil. Não se pode fazer de conta de que a contradição entre a promessa de triunfo da Vida e a realidade de Morte ganha espaço cada vez maior. Como então proclamar com os pés no chão a esperança na vitória da Vida?

Numa situação dessas só a arte pode vir em nossa ajuda. A ela precisamos recorrer para não deixar apagar-se a chama da alegria de viver. É isso que nos oferece Zé Vicente, poeta e cantor cearense que há quase 50 anos anima as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs – com suas composições. Uma delas, que agora completa 40 anos, tornou-se uma espécie de hino das CEBs, tanto tem sido cantada. Vale a pena conhecer essa composição, porque é um dos melhores remédios contra o desânimo que a realidade atual tem provocado em tanta gente.

Note-se que a letra, que é realçada por uma melodia simples e fácil de ser cantada, nada tem de propriamente religiosa se “religioso” for entendido como referência explícita ao divino ou à Bíblia. Ela fala de uma utopia radicalmente humana que virá com “o dia da paz”, sob o brilho do “Sol da esperança”, quando veremos “o povo nas ruas sorrir” e a “roseira florir”, “cercas e muros no chão” e “as mesas se encherem de pão”. Nesse dia “o olhar da gente” dará a certeza de sermos irmãos, dando início ao “reinado do povo”. E o sonho continua: “destruídas as armas da destruição”, vai triunfar o “decreto que encerra a opressão” embora “assinado só no coração”. Será “tempo novo de eterna justiça”, “sem ódio, sangue ou cobiça”, em que “a voz da verdade” é ouvida e a mentira abolida. Por isso, é hora de cantar com alegria essa cativante utopia.

Certamente, a grande aceitação de Utopia nos ambientes identificados com a Teologia da Libertação nas Igrejas cristãs deve-se ao fato de utilizar-se de metáforas que falam do Reino de Deus referindo-se ao “reinado do povo”. São sinais do Reino de Deus que virão: “mesas cheias de pão”, “cercas e muros caídos no chão” e o “dia da paz” que traz a “eterna justiça”.

Não é difícil a quem interpreta a promessa do Reino de Deus como mudança radical na História humana – como faz a Teologia da Libertação – identificá-la com a utopia de um mundo que há de vir, mundo onde reinam a Paz, a Justiça e o Cuidado com a Terra.

Mas também fora dos ambientes cristãos, onde não se fala da promessa do Reino de Deus, a Utopia tem sido cantada para evocar o ideal ecológico e socialista de uma sociedade fundada na Justiça, na Igualdade, na Paz e no Cuidado com a Terra. Por isso, tanta gente canta e louva o Sol da esperança que vai brilhar, fazendo florescer todos os jardins e instaurar relações sociais igualitárias que levam o povo a sair às ruas e a sorrir. Daí o sucesso de Utopia nesses seus 40 anos de difusão nos ambientes populares.

Essa difusão de Utopia nos meios populares chegou até o carnaval: seu refrão foi incorporado ao samba-enredo do Bloco Tykerê, de Crateús-CE, para o desfile de 2007. Seus temas eram a vida e atividades de Dom Fragoso, o primeiro bispo daquela diocese, falecido no ano anterior. Em ritmo de frevo, mobilizando mais de dez alas temáticas e alguns carros alegóricos, o bloco narra a vida do bispo, grande incentivador das Pastorais populares e do Ecumenismo, e lembra um de seus colaboradores, o padre Alfredinho, sempre identificado com a população pobre, inclusive no vestir-se. Naquele inusitado desfile em que símbolos religiosos convivem em harmonia com sensuais bailarinas representando anjos do céu, expressou-se em modo carnavalesco o mesmo sonho do Reinado do Povo.

15 anos depois daquele desfile, já não encontramos tantos bispos e padres nas lutas populares como profetas da Libertação, apesar do esforço de Francisco nesse sentido. Cabe a nós, leigos e leigas das Igrejas cristãs que levam a sério a promessa do Reino de Deus, incentivar nossas comunidades, padres, pastores e bispos a não transigirem diante do tradicionalismo reacionário e recuperar a vitalidade da Igreja da Libertação. Assim, com Zé Vicente e todas as pessoas que lutam por Paz com Justiça, continuaremos a cantar a Utopia e a animar as muitas lutas sociais para a construção do Reinado de Deus na História Humana.

Se não o fizéssemos, deixaríamos esvair a alegria de viver e teríamos uma quaresma sem Páscoa. Sofreríamos a dor das guerras e da morte, sem a Esperança da ressurreição. E não é essa a proposta de Jesus de Nazaré, o Cristo crucificado e ressuscitado.

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