Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

A esquerda não deve reduzir a religião a um instrumento de manipulação e alienação

Dois livros recém-publicados cumprem um importante papel não apenas dentro do espiritismo, mas também no campo da esquerda de maneira geral

Fotos: Reprodução
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Por Felipe Gonçalves e Raphael Faé

Lamentavelmente, parte da esquerda ainda se encontra influenciada por uma leitura simplista e carregada de senso comum quando o assunto é religião e espiritualidade. Em uma compreensão equivocada da obra de Marx e Engels, parte da nossa militância ainda costuma reduzir a religião a um instrumento de manipulação e alienação, fruto de uma leitura reducionista da famosa frase “a religião é ópio do povo”, de Karl Marx. É também isso, mas não é apenas isso. 

Em uma leitura atenta de todo o parágrafo do texto onde Marx define a religião como o ópio do povo, na obra Crítica da filosofia de Hegel – Introdução, percebe-se que ele estabelece uma relação dialética da religião tanto como instrumento de manipulação e alienação, mas também como instrumento de protesto contra o poder dominante. Aliás, uma leitura aprofundada da obra de Marx e Engels demonstra que os dois pensadores compreenderam essa dupla função da religião. Friedrich Engels, por exemplo, anotou que os movimentos religiosos também podem cumprir um papel progressista e emancipatório na História. Em seu famoso As guerras camponesas na Alemanha, Engels exaltou o caráter emancipatório do movimento anabatista e tratou o teólogo protestante Thomas Müntzer, líder daquele movimento, como um autêntico revolucionário. 

Na América Latina, é bastante conhecida a atuação da Teologia da Libertação, movimento cristão de caráter progressista, e que cumpriu um importante papel civilizatório nas lutas populares em nosso continente. Também é conhecida a atuação revolucionária dos Sandinistas, na Nicarágua, movimento majoritariamente formado por cristãos que pegaram em armas para construir uma Revolução Social. Também vale destacar a atuação do sacerdote colombiano Camilo Torres, um padre-revolucionário que atuou como guerrilheiro, cuja obra Escritos sobre cristianismo e revolução foi publicada recentemente pela editora Alma Revolucionária.

Diante dessa realidade histórica, onde a religião (ou espiritualidade) se manifesta tanto como instrumento de controle e alienação, mas também como ferramenta de protesto e emancipação, o espiritismo também apresenta essa contradição interna, e também expressa disputas entre grupos conservadores e progressistas, à direita e à esquerda do espectro político. 

Se de um lado temos um hegemônico movimento espírita federativo, de caráter alienado e conservador, onde seus líderes e médiuns-gurus atuam pela domesticação dos fiéis e pela manutenção do status quo capitalista, por outro lado temos um (ainda) minoritário movimento espírita progressista, que atua de maneira crítica em relação ao modelo federativo e trabalha para a construção de um espiritismo emancipador, vinculado às reivindicações populares e engajado nas lutas por transformação social.

Nesse sentido, a editora Alma Revolucionária se propôs a contribuir com esse debate e cumpre a importante tarefa de resgatar obras de importantes autores espíritas progressistas. É o caso das recém-lançadas obras Os espiritualistas perante a paz e o marxismo,  de Eusínio Gaston Lavigne, e Espiritismo dialético, de Manuel S. Porteiro.

Eusínio Gaston Lavigne (1883-1973) foi um advogado, cacauicultor e político baiano, que chegou a ocupar o cargo de prefeito da cidade de Ilhéus. Foi casado com Maria Odília Teixeira (1884-1970), considerada a primeira médica negra da história do Brasil. Socialista desde a juventude, Eusínio se aproximou do PCB durante a década de 1930. E embora jamais tenha sido um quadro oficial do Partidão, ele manteve uma relação estreita com diversos líderes comunistas de sua época, como Luís Carlos Prestes, e chegou a sair como candidato  não-comunista ao Congresso Nacional pelo PCB, em 1945, participando de um comício ao lado de Carlos Marighella. Como espírita, Eusínio compreendia que a espiritualidade não poderia ficar deslocada da realidade social. Em seu livro, ele apresenta um sofisticado diálogo entre espiritismo e marxismo, apresentando uma ousada proposta de construção de um espiritismo que seja ao mesmo tempo ferramenta de desenvolvimento espiritual e artífice de uma revolução social. 

Já o argentino Manuel S. Porteiro (1881-1936) foi um operário e líder sindical, que atuou nos movimentos de trabalhadores organizados da Argentina e do Chile. Como espírita, exerceu o cargo de presidente da Confederação Espiritista Argentina (CEA), ocasião em que atuou para vincular o espiritismo à temática social, propondo a formação de cátedras de sociologia nas instituições espíritas, pois entendia que os adeptos do espiritismo não deveriam ficar indiferentes aos problemas sociais. Dono de vasto conhecimento geral, ele se destacou como um dos intelectuais espíritas mais brilhantes da história. Em seu ousado livro Espiritismo dialético, Porteiro trouxe o espiritismo para dentro da tradição dialética e apresentou uma sofisticada ferramenta teórico-prática para a construção de um espiritismo progressivo, que avança superando suas limitações e contradições em constante diálogo com outras áreas do conhecimento (como desejava Allan Kardec), mas também profundamente progressista, que supera o horizonte individualista da reforma moral, e que entende a necessidade de transformação de toda a coletividade. Para tanto, Porteiro propôs a necessidade de uma interlocução do espiritismo com o socialismo.

As duas obras recém publicadas pela editora Alma Revolucionária cumprem um importante papel não apenas dentro do espiritismo, mas também dentro do campo da esquerda de maneira geral. As últimas eleições presidenciais demonstraram o peso da religião no cenário político do País, em que a extrema-direita atuou de maneira deliberada para cooptar as comunidades de fé e viabilizar seu projeto de poder obscurantista. Enquanto a esquerda não compreender a urgência de disputar o campo religioso, estabelecer um diálogo constante com as comunidades de fé e contribuir para a construção de uma espiritualidade que seja um instrumento de emancipação social, a extrema-direita seguirá dominando esse espaço da maneira mais vil e oportunista possível. 

Assim, obras como as de Eusínio Lavigne e Manuel Porteiro chegam em boa hora, e se apresentam como valiosas contribuições para pensarmos a construção de uma espiritualidade progressista, crítica, conectada com a realidade social, que seja aliada das lutas populares, do combate ao racismo, da emancipação das mulheres, da questão indígena e da comunidade LGBTQIAP+. Uma espiritualidade que se manifeste como um poderoso instrumento de superação do regime de exploração capitalista e atue de maneira propositiva na construção de um mundo novo, mais justo e solidário, o que apenas a construção do socialismo pode oferecer.

Obs: Os livros de Eusínio Lavigne, Manuel S. Porteiro e do padre Camilo Torres podem ser adquiridos pelo site da editora Alma Revolucionária: https://www.almarevolucionaria.com/

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