Diálogos da Fé

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A cruz nossa de cada dia

Que, nesta Páscoa, celebremos a salvação, não a que se diz única e fixa, mas a salvação cotidiana e plural da vida, misturada com o luto, as lágrimas mas também com as pequenas alegrias na fé e na esperança

Marielle Franco. Foto: Dayane Pires/CMRJ
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Para a tradição cristã, estamos na semana de Páscoa, ou Semana Santa. A Páscoa é a passagem. Passagem da opressão à libertação, passagem da morte à vida, das trevas à luz. Embora tenha sua origem na tradição judaica, a data ganha novos contornos e interpretações a partir da morte de Jesus na Cruz. Quantas cruzes atravessam a nós, latino-americanos, em nosso cotidiano?

A cruz é um símbolo com muitos significados. Carrega em si as dores da injustiça de um inocente morto, da perseguição político-religiosa de seu tempo e também de um grande sofrimento e humilhação. 

O relatório da Anistia Internacional de 2023 aponta que o Brasil é o quarto país do mundo onde defensores dos direitos humanos e do meio ambiente mais morrem. A cruz, que também serviu como instrumento de colonização do Sul Global, é imposta aos povos colonizados como uma cicatriz colonial que acompanha o cotidiano com suas desigualdades sociais e econômicas, e sua principal marca é a luta pela terra. Júlia Mello Neiva, coordenadora do programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas, aponta que os povos indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais são os grupos mais afetados pela violência letal que persegue os defensores da terra e do meio ambiente.

Não é coincidência que, após seis anos de uma pergunta constante em nossas mentes – “quem mandou matar Marielle?” – descobrimos que uma das motivações por trás da morte da vereadora e de seu motorista, Anderson Gomes, envolvia interesses em terras.

De acordo com a investigação e o relatório da Polícia Federal, uma das razões por trás do assassinato de Marielle foi a área que os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão planejavam invadir. Chiquinho, então vereador na época do crime, propôs o PLC 174/2016, que visava regularizar terrenos na região para a construção de imóveis comerciais explorados pela milícia. Marielle, por sua vez, lutava pela destinação da área para moradias populares, beneficiando as comunidades carentes do território. Curiosamente, o PLC 174 foi aprovado exatamente no dia do assassinato da vereadora, em 14 de março de 2018.

Esses dados foram trazidos à tona no último Domingo de Ramos, 24 de março de 2024, uma semana antes da celebração da Páscoa. Neste dia, foram presos Chiquinho, Domingo e o ex-chefe da Polícia Civil do Rio, Rivaldo Barbosa.

Nesta semana, cristãos e cristãs em todo mundo estarão refletindo sobre o significado da morte, a Via Crucis, e é importante pensarmos que a crucificação não é só a de Jesus. Ela não aconteceu só no passado, mas acontece diariamente nas nossas cidades com cada militante morto em Nuestra América.

A crucificação ocorre quando as terras dos indígenas são tomadas pelo capital. Quando os movimentos sociais são criminalizados. Quando os jovens negros são exterminados nas periferias. Quando a violência contra as mulheres aumenta desenfreadamente. Acontece quando o Israel comete um genocídio televisionado contra o povo palestino. Quando os direitos trabalhistas são rasgados. A crucificação acontece também quando desastres ecológicos como em Mariana, em Brumadinho acontecem e nada é feito. Quando o desmatamento ocorre, todos veem e todos se calam. O silêncio contra o opressor é o grito para crucificar o inocente. 

Porém, a fé cristã diz que a morte não tem a última palavra! Ivone Gebara diz que o símbolo da cruz não deveria mais expressivo da fé cristã, mas sim a comunidade em torno dela – uma comunidade que diz não a essas mortes, uma comunidade que diz não a cada crucificação, uma comunidade que diz não aos poderes que matam sistematicamente alguns corpos. 

Vemos no Evangelho os gestos de suas amigas em volta da cruz, cuidando do corpo de Cristo já sem vida. São nesses gestos de afeto  que a salvação é gestada criativamente na comunidade, que a ressurreição da esperança é anunciada. A justiça está sendo feita porque a comunidade daqueles e daquelas que buscam por justiça não se cansaram de perguntar: “quem mandou matar Marielle?”, porque essa comunidade não se esqueceu ou calou perante as ameaças e violência. 

Marielle vive! O sangue de Marielle e Anderson continuarão a clamar por justiça, não só pela vida deles, mas por cada vítima das mãos dos poderosos deste mundo. 

A justiça correndo como um rio perene e a democracia sendo defendida é a promessa de uma ressurreição como realidade viva, e não apenas uma fraca ilusão. Que, nesta Páscoa, celebremos a salvação, não a que se diz única e fixa, mas a salvação cotidiana e plural da vida, misturada com o luto, as lágrimas mas também com as pequenas alegrias na fé e esperança que os perversos não prevalecerão. 

Marielle Presente! Marielle Presente! Marielle Presente!

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