Daniel Camargos

Daniel Camargos é repórter há 20 anos e cobre conflitos no campo, especialmente na Amazônia, para a Repórter Brasil. É fellow do programa Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center

Daniel Camargos

Por dentro da realidade escaldante do agronegócio

A desolação da monocultura de soja e das queimadas para abrir pastos revela uma urgente interseção entre a voracidade humana e a devastação ambiental

(Foto: Álvaro Rezende/Repórter Brasil)
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Quando aconteceram as queimadas no Pantanal, em 2020, estava em Corumbá (MT), cidade banhada pelo rio Paraguai – raso e seco na ocasião. Atordoado com o céu branco de fumaça e o calor sufocante, fiquei incrédulo ao sair de um restaurante e observar o termômetro no painel do carro marcando 43°C. 

Descrevi na Repórter Brasil um cenário desolador quando passava pelas margens da BR-262, entre as cidades de Miranda e Corumbá: “Nas áreas alagadas que restaram do Pantanal, não mais se observam os até então onipresentes jacarés – apenas um espécime carbonizado pelo fogo. Em meio às cinzas e brasas, um cervo, atônito, caminha  sozinho e sem rumo. Um tuiuiú – ave-símbolo do Pantanal – arremete o pouso algumas vezes, como se não encontrasse um lugar em meio à vegetação queimada”.    

O motivo de tanto fogo: abrir áreas para bois pastarem. 

Três anos depois, em setembro passado, em Novo Progresso, no sudoeste do Pará, mais uma vez fotografei o termômetro no painel do carro saindo do almoço e enviei a imagem para amigos: 48°C. Recebi expressões de surpresa e emojis de fogo como resposta. A sensação que persiste é que todos estamos nos acostumando com o calor infernal.

Novo Progresso, para quem não sabe, se tornou cidade símbolo da destruição e do fogo. Foi lá, que em 2019, fazendeiros e empresários se organizaram em um grupo de Whatsapp para promoverem o nefasto Dia do Fogo, uma queimada organizada com 200 focos de incêndio no entorno da BR-163. Escrevi diversas reportagens, algumas com evidências robustas e detalhes das investigações da Polícia Federal, mas ninguém foi punido.

Por causa do meu trabalho voltei outras vezes à Novo Progresso. À medida que a floresta é derrubada, silos de soja são erguidos nas margens da rodovia. A antes tenebrosa BR-163 cheia de buracos e trechos quase intransponíveis se transformou em um tapete negro de asfalto, que se estende para as carretas bi-trem carregadas de soja do Mato Grosso seguirem em fila até o porto de Miritituba, nas margens do rio Tapajós. Não sem antes pagarem o pedágio recém-implantado. 

Além de jogar a floresta no chão, a monocultura da soja é responsável por conflitos fundiários, mortes e ameaças de pequenos produtores e populações tradicionais, como mostrei na reportagem: Área incendiada no ‘Dia do Fogo’ foi transformada em plantação de soja.

Mas para quem está se beneficiando da produção os ganhos são palpáveis. A área urbana de Novo Progresso tomou um banho de loja nos últimos anos. Surgiram boutiques, franquias de marcas famosas, restaurantes, churrascarias e muitas ruas que eram de terra foram asfaltadas.

Enquanto isso, após cinco minutos fora do ar condicionado do carro ou do hotel, sinto um desconforto imenso. Uma mistura de sensação de abafamento e sufocamento com calor que dificulta a articulação de ideias e até mesmo conseguir entrevistar as pessoas. 

Os benefícios para os produtores de soja podem ser efêmeros caso a exploração continue seguindo um padrão predatório. O setor agrícola brasileiro enfrenta desafios imensos devido às mudanças climáticas, mas grande parte prefere seguir afundado no negacionismo verde a amarelo, lutando contra inimigos imaginários vermelhos e estrangeiros e deixando de lado o bafo quente da emergência climática que funga em seus cangotes. 

De janeiro a setembro deste ano, as perdas na agropecuária brasileira atingiram a expressiva cifra de R$ 33,7 bilhões, conforme relatado pela Confederação Nacional de Municípios. As projeções mais recentes do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos apontam para uma colheita de soja no Brasil estimada em 129 milhões de toneladas, abaixo das 137 milhões registradas na temporada anterior.

Essa perspectiva é suscetível a uma nova revisão negativa no próximo relatório de dezembro. A razão para essa previsão mais conservadora, como destacado em uma reportagem da Bloomberg, reside na terra ressecada e no calor intenso que estão retardando o plantio de soja no Brasil.

A elevada temperatura pode impactar também a próxima safra de milho, que não pode ser semeada até a conclusão da colheita da soja. Tradicionalmente, os agricultores brasileiros realizam o plantio da soja entre setembro e outubro, com a colheita programada para o período de janeiro a março. Após a colheita da soja, é comum a prática do cultivo da chamada safrinha, que representa a segunda safra de milho do ano e inicia-se em maio.

A punição econômica ao agronegócio que tanto desmata e queima poderia ser uma revanche redentora. O problema é que todos sofrem da mesmo forma. Assim como eu e você que lê esse texto, 116,6 milhões de pessoas vivem em áreas afetadas pela onda de calor que atingiu 2.707 cidades brasileiras.

Longe da Amazônia, em Belo Horizonte (MG) onde vivo, os efeitos foram sentidos com força na última semana. Comentei com minha companheira, que a sensação é que estamos vivendo uma distopia com a trilha sonora onipresente do ruído dos ventiladores cada vez mais cambaleantes pelo trabalho ininterrupto. 

Acordava exausto e suado, com o cenho franzido pelo incômodo do sono embalado pelo barulho das hélices. Em cada manhã vivia meu Apocalypse Now particular. Praguejava contra os sojeiros, pecuaristas e multinacionais que fomentam a destruição da floresta e ouvia a voz de Jim Morrison sussurrando no inconsciente: This is the end.  

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