Daniel Camargos

Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.

Daniel Camargos

O que está por trás da decisão que libera a soja sobre a Amazônia

Pressionado por setores radicais do agronegócio, o Cade suspendeu pacto privado que freava o desmatamento

O que está por trás da decisão que libera a soja sobre a Amazônia
O que está por trás da decisão que libera a soja sobre a Amazônia
Vista aérea do encontro da Floresta Amazônica com lavouras de milho e soja na margem da Terra Indígena Erikpatsa, onde vive o Povo Rikbaktsa. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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A Moratória da Soja, acordo que por quase duas décadas impediu a compra de grãos cultivados em áreas desmatadas da Amazônia após 2008, foi suspensa por ordem do Cade, o órgão que regula a concorrência entre empresas no Brasil. A decisão atendeu a um antigo desejo de setores do agronegócio que rejeitam qualquer regra ambiental, inclusive aquelas criadas pelo próprio mercado.

Durante quase duas décadas, a moratória ajudou a conter a expansão da soja sobre a floresta. Na prática, a suspensão atende aos interesses de quem quer transformar áreas de mata em lavoura, seja comprando, grilando ou desmatando novas terras na Amazônia, agora com a expectativa de ter mercado garantido.

E isso acontece às vésperas da COP30, justamente quando o Brasil tenta se vender como exemplo de compromisso ambiental.

A medida cautelar do Cade foi anunciada em 20 de agosto e abriu um processo administrativo contra mais de 30 empresas e entidades do setor. A acusação é de suposta formação de cartel. Segundo a Superintendência-Geral do órgão, as empresas teriam alinhado condutas comerciais ao se recusarem, em conjunto, a comprar soja de áreas desmatadas após a data de corte.

A ordem foi suspender o acordo e interromper qualquer troca de informações consideradas “comercialmente sensíveis”, sob risco de multas que podem chegar a 2 bilhões de reais no caso das associações e até 20% do faturamento das empresas.

Com a decisão, o Cade deu razão a uma campanha articulada por uma ala politicamente ativa do agronegócio que resiste a qualquer forma de autorregulação ambiental.

Foi a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, quem usou pela primeira vez a expressão “ogronegócio” para se referir a esse grupo, em um depoimento no Congresso, o que despertou a ira dos ruralistas. Adotei o termo para batizar uma série de reportagens publicadas na Repórter BrasilOgronegócio: milícia e golpismo na Amazônia.

A moratória foi criada em 2006 por um grupo multissetorial que reuniu empresas, ONGs e representantes do governo. Estabeleceu que a soja plantada em áreas desmatadas na Amazônia após 22 de julho de 2008 não poderia ser comprada nem financiada por empresas signatárias.

Entre 2006 e 2023, a área plantada de soja no bioma cresceu 427%, mas quase toda essa expansão ocorreu sobre áreas já abertas, ou seja, sem provocar novos desmatamentos. Em 2021/22, 97,1% da soja cultivada estava dentro das regras do pacto, segundo auditorias do setor.

O Ministério do Meio Ambiente reagiu à decisão do Cade. Em nota, classificou os resultados do pacto como “incontestáveis” e lembrou que a Constituição garante tanto a livre concorrência quanto a proteção ao meio ambiente. O ministério também ressaltou que o acordo vetava compras em áreas embargadas e de produtores flagrados com trabalho análogo ao escravo.

Do outro lado, entidades ruralistas comemoraram. Lucas Costa Beber, presidente da Aprosoja-MT e vice da Aprosoja Brasil, afirmou que a moratória era uma “formação de cartel” que prejudicava pequenos e médios produtores. Beber é um dos rostos mais visíveis de uma ala radicalizada do agro, que estão expostos no relatório Agrogolpistas, do observatório De Olho nos Ruralistas. Beber foi um dos indiciados pela CPMI do 8 de Janeiro por apoiar atos antidemocráticos.

O relatório mapeou 142 empresários do setor com envolvimento logístico ou financeiro em tentativas de golpe entre 2022 e 2023. Deles, 71% estavam concentrados no chamado Arco da Soja, em estados como Mato Grosso, Goiás e Bahia. O ex-presidente da Aprosoja Brasil Antônio Galvan também aparece nas investigações. Ele foi citado por relatórios da Abin como líder do “Movimento Brasil Verde e Amarelo”, grupo que articulou manifestações pró-Bolsonaro e mensagens golpistas em caminhões e tratores.

Esse grupo agora emplaca uma vitória no Cade. E o impacto vai além da política ambiental. A moratória funcionava como um selo de confiança para compradores internacionais, especialmente na Europa, onde a rastreabilidade e o desmatamento zero são cada vez mais exigidos. Sem o pacto, cada empresa terá de provar sozinha a origem dos grãos que comercializa.

Isso torna a rastreabilidade mais difícil, mais cara e mais vulnerável a fraudes. Uma das mais conhecidas é a “lavagem de soja”, quando grãos de origem irregular são misturados com produção legal.

Reportagens já revelaram falhas nesse sistema, inclusive em operações envolvendo empresas como Cargill, Amaggi, Cofco e Bunge. Mesmo assim, o nível de não conformidade segue baixo: em 2021/22, 95,1% do desmatamento nos municípios monitorados não tinha relação com a soja.

O momento da suspensão é péssimo. Entra em vigor no fim de 2025 a Lei Anti-Desmatamento da União Europeia (EUDR), que exige comprovação de que produtos agrícolas não estejam ligados a desmatamentos após 31 de dezembro de 2020.

A Cargill, maior exportadora do País, já começou a ajustar seus relatórios com base nesse novo marco, como mostrou a repórter Helen Freitas. Sem um acordo setorial como a moratória, o Brasil perde sua principal ferramenta para atender a essas exigências de forma coordenada.

As associações e as empresas acusadas vão recorrer da decisão. Um relator será sorteado no Cade e terá 48 horas para emitir parecer e marcar o julgamento da medida cautelar. Já o julgamento de mérito, que determinará se houve ou não conduta anticoncorrencial, pode levar anos. Até lá, o acordo segue suspenso e o mercado operará no escuro.

Enquanto isso, a floresta enfrenta o risco de um novo ciclo de avanço da soja sobre áreas sensíveis. Produtores que antes evitavam desmatar para manter acesso ao mercado podem agora se sentir autorizados a testar os limites.

Organizações como Greenpeace, WWF e Imaflora alertam para os impactos dessa expansão sobre a biodiversidade, o equilíbrio hídrico e a produtividade agrícola na região, que depende da floresta em pé.

O que se vê é uma vitória de curto prazo para um grupo articulado politicamente, mas que impõe um custo de longo prazo ao País. Ao desmontar um pacto que ajudou o Brasil a se posicionar como exportador responsável, o governo acende um sinal de alerta vermelho na véspera do evento climático mais importante da década.

A COP30, em novembro, será realizada em Belém. O Brasil pretende liderar o esforço global contra o desmatamento. Mas, ao desmontar justamente o acordo que simbolizava esse compromisso, mostra para o mundo uma imensa contradição.

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