Daniel Camargos

Daniel Camargos é repórter há 20 anos e cobre conflitos no campo, especialmente na Amazônia, para a Repórter Brasil. É fellow do programa Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center

Daniel Camargos

Lula, será que dá mesmo para sentir orgulho da JBS?

A empresa dos irmãos Batista segue contabilizando episódios de violação dos direitos humanos e crimes ambientais em sua cadeia produtiva

Lula, em visita à planta frigorífica da JBS em Campo Grande (Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Apoie Siga-nos no

Acompanhado pelos irmãos Joesley e Wesley Batista, o presidente Lula (PT) participou de uma cerimônia em uma unidade da JBS, para celebrar a habilitação da unidade para exportar carne para China. O ambiente era festivo, com exaltação da pujança do agro. “Quero cumprimentar o Joesley, Wesley aqui, responsáveis por transformar a empresa na maior produtora de proteína animal do mundo. E eu sinto muito orgulho”, disse o presidente. 

O encontro marcou também o retorno dos irmãos Batista aos holofotes, pois estavam um pouco sumidos do noticiário político-policial, desde a delação premiada de Joesley, em 2017, aquela que abalou o governo de Michel Temer e atingiu em cheio o PT.

Talvez, se Lula prestasse atenção a uma série de notícias recentes, ele reconsideraria o orgulho que expressou.

Uma dessas reportagens foi publicada uma semana antes do encontro em Campo Grande, com a  atualização da “lista suja” do trabalho escravo, o cadastro de empregadores responsabilizados por submeter pessoas ao trabalho análogo à escravidão, divulgada pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

Entre eles estava um fazendeiro do sul do Pará que fornecia bois para a JBS. Na fazenda em São Félix do Xingu, quatro trabalhadores dormiam em um galinheiro com chão de terra batida e em um paiol de ferramentas. Os quatro também não tinham banheiro. Faziam suas necessidades no mato e tomavam banho em um córrego. 

“Sem essas estruturas, direitos fundamentais básicos – como privacidade, saúde e higiene – eram negados aos trabalhadores”, consta no relatório de fiscalização do resgate dos trabalhadores. O documento de 358 páginas está disponível desde 2018, quando o resgate dos trabalhadores foi realizado.

Mesmo após a fiscalização, a JBS continuou comprando de fazendas desse produtor, embora tenha afirmado à Repórter Brasil ter bloqueado essas fazendas após a divulgação da lista.

Essa não é uma ocorrência isolada. Na penúltima atualização da lista, em outubro de 2023, foram cinco fazendeiros fornecedores da JBS entre os escravagistas.

Poucos dias antes do discurso de Lula no Mato Grosso do Sul, outra notícia trouxe à tona dados de um estudo sobre os custos ocultos do monopólio industrial da carne, que mostrou um aumento do número de inscritos no Bolsa Família em cidades com plantas da JBS.

O estudo Alimentando a desigualdade: os custos ocultos do monopólio industrial da carne, de Raísa Pina, doutoranda em antropologia pela UnB, não estabeleceu uma relação de causalidade, mas questionou o paradoxo de uma grande empresa de alimentos coexistir com um índice crescente de fome em algumas cidades do Brasil. O estudo levantou dúvidas sobre o retorno social do investimento maciço em uma única corporação, especialmente considerando o slogan da JBS: “alimentando o mundo”.

Outro orgulhoso da JBS é o BNDES, que detém 20,81% de participação na companhia. O banco estatal é o segundo maior acionista, atrás apenas da holding J&F, dos irmãos Batista.

Diferente do presidente Lula e do BNDES, os indígenas do povo Parakanã não sentem orgulho da majestade da JBS e decidiram reclamar. 

Nesta quinta-feira 18, uma comitiva formada por indígenas e apoiadores foi recebida pela ouvidoria do banco estatal. Querem que o BNDES seja responsabilizado pelo desmatamento causado pela criação ilegal de gado dentro do território indígena Apyterewa e arque com os custos de recuperação da Terra Indígena. 

Localizada no sul do Pará, a Apyterewa, lar dos Parakanã, foi a terra índigena mais devastada nos últimos anos. Com 773 mil hectares de área, o equivalente a cinco municípios de São Paulo, a Apyterewa teve cerca de 100 mil hectares destruídos pelos invasores. A devastação só foi contida após o governo federal cumprir determinação do STF e realizar uma operação de desintrusão (retirada dos invasores), iniciada em outubro de 2023 e concluída em fevereiro deste ano. Mas o estrago permanece.

Estive lá, em outubro do ano passado, acompanhando os primeiros dias da operação de desintrusão. Enquanto percorria a estrada de terra para acessar a base da Funai, me deparava com comitivas de bois deixando a terra indígena diante da chegada das forças governamentais. Ao todo, 60 mil bois pastavam ilegalmente em um território que deveria ser protegido.

Vale notar que o acesso à base da Funai é feito pela cidade de Tucumã e que poucos quilômetros antes de entrar na vicinal uma placa da JBS anuncia: “Compra-se gado”. 

Investigações da Repórter Brasil revelaram que parte dos bois da reserva era comercializado para grandes frigoríficos, como a JBS usando uma triangulação conhecida como “lavagem de gado”, quando produtores encobrem a origem ilegal de seu rebanho, registrando a passagem dos animais por uma fazenda que não tem impedimentos socioambientais para vender ao frigorífico. 

A retirada dos bois e dos invasores foi uma operação de guerra, com centenas de policiais da Força Nacional, envolvimento de outros órgãos governamentais como Abin, PF, Ibama, Funai e diversos ministérios. Durou quatro meses e resistiu a muita pressão política, morte e ameaças até a retirada completa dos invasores. 

“O BNDES deu dinheiro para os fazendeiros ficarem mais fortes e derrubarem a floresta”, me disse Wenatoa Parakanã, para reportagem que fiz sobre a reivindicação dos indígenas. Um levantamento do MapBiomas apontou que, aproximadamente 98% da floresta destruída na TI Apyterewa deu lugar a pastagens para criação de gado.

Será que é mesmo para sentir orgulho?

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo