Daniel Camargos

Daniel Camargos é repórter há 20 anos e cobre conflitos no campo, especialmente na Amazônia, para a Repórter Brasil. É fellow do programa Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center

Daniel Camargos

Da enchente ao desemprego: a história esquecida de uma trabalhadora

O relato é mais um, entre tantos, da desumanização das relações de trabalho e do desamparo de milhões de brasileiros 

(Foto: iStock)
Apoie Siga-nos no

Um amigo compartilhou em um grupo do WhatsApp, no final do ano passado, a história da faxineira do prédio onde ele vive. A casa onde ela morava, alugada em um bairro de Contagem, na Grande Belo Horizonte, foi atingida pelas fortes chuvas do início de dezembro. Um barranco desabou, derrubou uma parede e a casa inundou, destruindo todos os móveis e eletrodomésticos.

Ela estava começando a trabalhar na limpeza do prédio dele e pediu ajuda aos moradores. Meu amigo se sensibilizou com a história e acionou outras pessoas, como eu. Alguns doaram móveis, cestas básicas e dinheiro para a mulher, de 38 anos, mãe solo de quatro filhos.

Pouco mais de um mês depois, esse mesmo amigo contou que a faxineira  teria sofrido um infarto, ficou internada por alguns dias e foi demitida depois de sair do hospital, onde chegou a ficar na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

As pessoas se mobilizaram novamente para ajudá-la e eu pensei: vou fazer uma matéria a respeito.

Casos assim vão deixando de ser notícia, porque infelizmente, nos acostumamos com a desumanidade das relações trabalhistas, ainda mais quando não são demissões em massa ou que despertam grande interesse. A tal da noticiabilidade. Mas, poxa, a pessoa perde tudo com as chuvas, infarta, fica internada e quando volta é demitida. Sacanagem tem limite, né? Eu pensei que talvez a matéria provoque uma onda de solidariedade e acabe ajudando a faxineira.

Com o intermédio desse amigo, consegui o telefone da faxineira. Liguei para ela e conversamos por mais de uma hora. “A casa alagou completamente. Um pedaço do barranco desabou no fundo. A água chegou no meio da parede da sala”, contou sobre a enchente ocorrida no início de dezembro. Disse que não deu tempo de tirar nada e que não tinha dinheiro guardado. Vivia de faxinas esporádicas até conseguir o emprego na empresa de conservação. No primeiro dia de trabalho, pediu um adiantamento para pagar o aluguel da nova casa.

Casos assim vão deixando de ser notícia, porque infelizmente, nos acostumamos com a desumanidade das relações trabalhistas

Com poucas semanas, passou a sentir dores no peito, procurou um posto de saúde, foi para o hospital, ficou internada e, na sexta-feira que antecedeu o carnaval, teve alta. Saiu direto do hospital e foi até o escritório da empresa de conservação. Queria levar o atestado médico e também saber do pagamento do salário, pois já era 9 de fevereiro e não havia recebido.

Não conseguiu falar com a dona da empresa e nem obter uma resposta sobre o pagamento. Revoltada e desesperada, com medo de ficar sem moradia novamente, caso não pagasse o aluguel, ela chamou a polícia e registrou um boletim de ocorrência.

Passado o carnaval, na quarta-feira de cinzas, a faxineira acordou às 6h52 com uma mensagem em seu telefone. Era a empresa para a qual trabalhava, avisando que estava demitida. Na última segunda-feira (19), ela foi à empresa fazer o acerto. Como foi demitida ainda no período de experiência, recebeu R$ 1,3 mil: “Todo mundo adoece. Isso que aconteceu comigo poderia ter acontecido com qualquer outro funcionário”, indignou-se.

Esperei o dinheiro cair na conta bancária dela para fazer a outra parte da matéria. Ouvir a empresa que a demitiu. Conversei mais uma vez com a faxineira, consegui o telefone da empresa e liguei. Falei com a dona e expliquei para ela sobre a matéria que estava escrevendo e disse que, antes de publicar, gostaria de ouvi-la.

Contei para ela isso que vocês leram nas linhas acima e passei a escutar. Primeiro, a empresária destacou sua própria bondade, de ter oferecido uma chance de trabalho para uma pessoa que precisava. Já na segunda frase, contou que é fiel de uma igreja pentecostal. “Meu coração é bom. Eu compro cestas básicas e dou para a igreja. Recebo muitas bênçãos do Senhor”, ela me disse.

Disse que o primeiro problema com a faxineira foi reportado por uma das moradoras do prédio que terceiriza a limpeza. Uma senhora com mais de 80 anos reclamou que a faxineira estava pedindo doações, por ter perdido tudo na enchente. A empresária então chamou a atenção da faxineira e decidiu mudar os prédios que ela limpava.

“Desse dia em diante, ela começou a trazer vários atestados”, afirma, tecendo considerações sobre a saúde da faxineira e insinuando que ela não estava doente de fato. Disse também que acompanhava as publicações da funcionária em redes sociais e chegou a ver  imagens de mesas com garrafas de cerveja.

Quando foi informada de que a funcionária estava na porta da empresa após sair do hospital, entrou em contato com o advogado. Ao ver o atestado médico, o advogado notou que no CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) estava o número que se referia à dor aguda no peito e não ao infarto, como a faxineira havia relatado. O advogado orientou a demissão da faxineira. “Eu não sou ingênua para mandar uma pessoa doente embora”, disse a empresária.

Quando a mulher foi até o escritório fazer o acerto, acompanhada do filho, a empresária fez questão de contar a este repórter os acessórios usados pelo jovem. “O menino chegou de tênis Nike de mola, iPhone na mão e correntão no pescoço”, descreveu. Perguntei então o que isso representava e ela respondeu: “Não estou aqui para aguentar desaforo”.

A faxineira está separada do pai de seus quatro filhos há oito anos. A mais velha tem 16 anos e o mais novo 10 anos. Atualmente, não recebe o Bolsa Família, pois quando esteve empregada com carteira assinada perdeu o direito ao benefício. Quando saiu da casa dos pais, em uma pequena cidade do interior de Minas, ela imaginou que a vida seria diferente. Tinha 17 anos e um sonho: “Eu cismava que Belo Horizonte era aquilo tudo. Que eu ia conseguir comprar minha casa”.

O sonho agora é menos ambicioso. É sobreviver. Para isso, ela quer voltar a trabalhar. Além do trabalho de faxineira, ela tem experiência como operadora de caixa de supermercado.

Logo depois da minha conversa com a empresária, a faxineira me ligou. Pediu para não publicar a reportagem. Ela conseguiu uma entrevista de emprego em um supermercado, mas tem medo de que a publicação da matéria possa levar a ex-patroa a tentar prejudicá-la.

A história da faxineira, que foi publicada aqui sem os nomes a pedido dela, é um exemplo de um ciclo, onde uma trabalhadora é arrastada para situações precárias, resultando em problemas de saúde e demissão. Um ciclo que evidencia a falta gritante de segurança básica no trabalho e na vida pessoal, mas também desvela a dolorosa degradação da essência humana, sintoma da desumanização inerente ao capitalismo. E tudo isso em um contexto que pode ter sido imaginado pelo leitor: uma faxineira negra e uma patroa branca.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo