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Seguro-saúde cancela contrato de criança autista e mãe protesta em abaixo-assinado

Operadoras rescindem unilateralmente planos de pacientes em longos tratamentos; além de autismo, Arthur tem síndrome de Down e TDAH e está em meio a um processo de terapias

Vai ter luta: Daiana, mãe de Arthur, diz que não vai aceitar essa imposição calada (Foto: Arquivo pessoal)
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A assistente de conformidade Daiana Campos, de 46 anos, está enfrentando uma árdua batalha contra uma empresa de seguro-saúde. No mês passado, ela recebeu um comunicado dizendo que sua apólice seria cancelada. “Me senti, na verdade, sem chão”, conta Daiana, mãe de Arthur Andrade Campos, de oito anos, autista e portador de síndrome de Down.

Daiana faz parte de um grupo de centenas de famílias que estão sendo surpreendidas pelas operadoras de seus planos de saúde com avisos de rescisão unilateral de contratos. O ponto em comum entre elas é que todas possuem algum familiar que faz tratamento para autismo ou doenças graves que demandam muitas terapias, como o câncer.

“Somos um tipo de cliente que eles não querem, pois não geramos lucro para eles”, desabafa a assistente no texto de um abaixo-assinado que criou para protestar contra a situação. Aberta na plataforma Change.org, a petição já ultrapassa 43 mil assinaturas. 

Daiana, que mora na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, conta que decidiu lançar a mobilização contra os planos depois de tomar conhecimento, por meio de sua advogada, de que esses cancelamentos estão ocorrendo em massa no Brasil. Somente no estado de São Paulo, a Assembleia Legislativa recebeu cerca de 200 denúncias de rescisões unilaterais repentinas. 

“[Isso] me despertou uma vontade de gritar e mostrar para esses planos e seguros que se pensam que a gente vai receber essas imposições deles, ficar calados e aceitar sem lutar pelo que é de direito dos nossos filhos, de forma alguma”, declara a mãe de Arthur sobre sua motivação para lançar o abaixo-assinado, que segue em ritmo de crescimento na internet. 

A assistente de conformidade explica que possui o seguro-saúde, do tipo empresarial, há três anos e que nunca deixou de pagá-lo. Ela optou pelo seguro justamente por ele ter uma cobertura de terapias e consultas maior que a dos planos e por não possuir coparticipação. O titular do seguro é o seu esposo e pai de Arthur, que é Microempreendedor Individual.

“Resolvemos nos apertar de tudo e dar prioridade para a saúde”, explica Daiana sobre a escolha de manter os altos pagamentos do seguro-saúde mesmo perdendo o emprego durante a pandemia. “Hoje já estou trabalhando, mas me reerguendo, e é bem oneroso esse valor, mas não deixo de pagar, pois meu filho precisa, é o futuro dele que está em jogo.”

Diagnosticado com síndrome de Down no nascimento, a descoberta do Transtorno do Espectro Autista, junto com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, só chegou quando Arthur estava para completar cinco anos. Ele precisa de vinte horas semanais de terapias, incluindo fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicoterapia e fisioterapia. 

Devido à condição de autismo combinado com síndrome de Down e TDHA, Arthur não fala, ainda usa fraldas e possui sérios problemas comportamentais. Além das terapias, ele depende do seguro-saúde para realizar exames de rotina e passar por consultas com a pediatra e com outras especialidades médicas a cada seis meses ou em intervalos de um ano. 

Batalha árdua 

A notificação de cancelamento recebida pela família dá um prazo de sessenta dias para que eles possam migrar para outro plano. Além de Arthur, o marido de Daiana e seu filho caçula, de três anos, também foram atingidos. “Não posso nem pensar em ficar sem o seguro”, diz a mãe.

Sem saber se receberia o valor do reembolso das sessões de terapia do filho, a assistente de conformidade não teve escolha senão interromper o tratamento. Muitas vezes, por burocracias injustificáveis do seguro, o reembolso leva até dois meses para cair. 

“O Arthur evolui um pouco e para quando deixa de fazer as terapias. Às vezes, por falta de dinheiro, temos que parar. Agora mesmo, paramos, pois com essa incerteza não temos condições financeiras de arcar com tudo sem sermos reembolsados depois. Ele já regrediu nesse pouco tempo, é notório isso. É muito cansativo ver ele evoluindo e depois declinando.”

A criança depende do seguro saúde para a realização de terapias especializadas (Foto: Arquivo pessoal)


Desde janeiro, a mãe de Arthur vem encarando uma árdua batalha contra a empresa do seguro-saúde, que inclui muito estresse e desrespeito ao consumidor. Até a chegada da notificação de cancelamento, muitos foram os desgastes que pareciam, nas palavras de Daiana, querer forçá-los a desistir por vontade própria e cansaço do seguro. O que não aconteceu. 

Entre as burocracias injustificáveis, Daiana aponta a solicitação de documentos complementares em processos de reembolsos quando estes estavam muito próximos do prazo de vencimento. “Eram umas coisas banais, tipo relatório com data errada, endereço da terapeuta que não estava escrito dentro do relatório dos atendimentos, mas pergunto: para que, se o relatório era timbrado com nome da clínica, endereço e telefone?”

Em março, os “empecilhos sem fundamentos”, como diz Daiana, foram outros. O aplicativo do seguro começou a apresentar um erro no envio das documentações. O reconhecimento facial do titular – esposo de Daiana -, conforme exigido, foi feito, mas mesmo assim a falha persistia.

“Liguei para o 0800 deles e pedi ajuda. Sabe o que eles me disseram? Que tinha que ser o reconhecimento facial do Arthur, pasmem! Como eu iria fazer uma criança com deficiência, em determinado momento, ter que sorrir quando o scanner solicita? Meu Deus!”

E o “combo de estresse” não parou por aí. A empresa, então, exigiu o envio dos documentos – notas, relatórios e laudos – por Sedex. Daiana ficou três meses sem reembolso, tendo que arcar, de seu próprio bolso, com os custos dos tratamentos e das terapias do filho. 

Para não correr o risco de ficar sem atendimento, após o aviso de cancelamento da apólice, a assistente de conformidade entrou com uma ação judicial contra o seguro-saúde. 

No último dia 21, saiu uma liminar da Justiça suspendendo o cancelamento do seguro até o julgamento final do caso. Ainda não há previsão para essa conclusão. 

O que diz a ANS

A Agência Nacional de Saúde Suplementar é uma autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, que regula e fiscaliza o mercado de planos privados de saúde no Brasil. A equipe da Change.org entrou em contato com o órgão para solicitar uma resposta sobre os cancelamentos em massa que estão sendo feitos, de forma unilateral, pelas operadoras. 

A assessoria de imprensa da ANS se manifestou por meio de nota. O órgão informou que nenhum beneficiário pode ser impedido de adquirir plano de saúde ou ser excluído em função de sua condição de saúde ou idade. 

No caso dos planos coletivos, a agência diz que “quando o cancelamento do plano não é solicitado pelo próprio consumidor, a operadora pode excluir o beneficiário somente em caso de fraude ou de perda de vínculo com a pessoa jurídica contratante, se estiver previsto em contrato”. A ANS informou ainda, que, à exceção dessas duas hipóteses, a responsabilidade da exclusão do beneficiário de plano de saúde é sempre da pessoa jurídica contratante do plano. 

Já no caso de pessoa jurídica, após o prazo de vigência do contrato coletivo, a rescisão contratual imotivada pode ocorrer, devendo ser sempre precedida de notificação prévia com 60 dias de antecedência. Segundo a nota, nos planos individuais, as operadoras somente podem rescindir unilateralmente um contrato em casos de fraude ou não-pagamento da mensalidade.

“Quando o beneficiário é excluído do seu plano de saúde ou tem o seu contrato rescindido, ele tem o direito de realizar a portabilidade de carências”, informa o comunicado enviado pela assessoria de imprensa da ANS. “A operadora que rescindir o contrato de beneficiários de planos coletivos, e até mesmo os individuais, em desacordo com a legislação da saúde suplementar pode ser multada em valores de até R$ 80 mil”, acrescenta o órgão.  

 A ANS orienta os usuários que estiverem enfrentando problemas não resolvidos nos contatos com suas operadoras a registrar reclamação nos Canais de Atendimento do órgão. 

A Agência Nacional de Saúde Suplementar foi questionada, especificamente, sobre quais providências tomará em relação aos casos em série de cancelamentos unilaterais de famílias com membros autistas ou passando por longos tratamentos, mas não respondeu.   

O que diz o seguro-saúde

A Change.org também acionou a empresa do seguro-saúde da família de Daiana para obter uma resposta sobre o cancelamento. Por meio de nota, a Bradesco Saúde informou apenas que “não rescinde contratos por qualquer motivação relacionada às coberturas contratadas e em desacordo com as condições contratuais pactuadas entre as partes”.

Movimentações

A repercussão dos casos fez com que o PL 7419/2006, que pretende alterar a Lei dos Planos de Saúde, voltasse aos holofotes. O relator, deputado federal Duarte Júnior (PSB-MA), anunciou que irá rever, entre outros pontos, a permissão de rescisão unilateral pelos planos. 

Já o Ministério Público de São Paulo, que recebeu as denúncias anteriormente levadas à Assembleia Legislativa, instaurou um inquérito para apurar os casos de rescisão unilateral. 

O ponto central da denúncia, que tornaria os cancelamentos ilegais, é o fato de os pacientes estarem em meio a tratamentos de saúde. Há um entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que as operadoras de saúde não podem cancelar contratos de pacientes em tratamento, até a alta médica. Arthur está no meio de um tratamento com terapias contínuas e depende disso para ter mais qualidade de vida e não sofrer danos irreversíveis. 

Além de autismo, Arthur também possui síndrome de Down e TDAH (Foto: Arquivo pessoal)


“Nossos filhos não são deficientes, e sim a sociedade em que vivemos. [Ela] não está preparada para a diversidade das pessoas, pois há muito ainda para se trabalhar para a inclusão de fato. A sociedade deveria ser mais empática. Às vezes parece que pedimos demais, mas não, só quem sente na pele sabe que é uma luta diária para tudo”, diz Daiana.

O abaixo-assinado criado pela mãe de Arthur segue aberto e reunindo mais apoiadores. Para assinar e reforçar a causa, acesse: http://change.org/AutistasAcessoTerapiasSaude

Atualização

Após a publicação desta matéria, a Bradesco Saúde entrou em contato com a Daiana pedindo para ela desconsiderar a carta de cancelamento e informando que o plano continuará ativo. Daiana aguarda, ainda, uma formalização sobre a suspensão do cancelamento.

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