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A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.

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Três propostas sinérgicas para o Direito à Cidade

As cidades brasileiras concentram 85% da população e é nelas que os problemas mais graves, mas também os avanços mais relevantes, se materializam

Imagem: iStock
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Por Ion de Andrade, Cláudia Pires, Gilson Paranhos, Flávio Tavares e Pablo Fernandes*

A rodada aberta pelo governo federal para a discussão pública do Plano Plurianual Participativo[1] (PPA) através da plataforma Brasil Participativo vem produzindo grande interesse da sociedade. Até o dia 30/05/2023, mais de 1.500 propostas haviam sido formalizadas, com um ritmo de cerca de uma centena de propostas por dia.

A área de Cidades, cujo carro-chefe do governo é o programa Minha Casa, Minha Vida, vem sendo objeto de uma série de propostas que vão além da política de produção de moradias e adentram no universo de construção do bem-estar social, o que evoca uma concepção de cidades e do Direito à Cidade para além das moradias.

Não fosse esse caráter totalizador do conceito de Cidade, que contempla uma identidade territorial e histórica definida, além da dinâmica da oferta de bens, serviços, direitos e oportunidades, tais propostas novas teriam dificuldade de encontrar uma “rubrica” adequada para serem registradas num exercício orçamentário naturalmente fragmentado.

Nas cidades brasileiras se concentram 85% da população e é nelas que os problemas nacionais mais graves, mas também os avanços mais relevantes, se materializam e se dão a conhecer. É no contexto das cidades que se distribuem os dispositivos de Saúde do SUS, tais como as Unidades Básicas de Saúde, maternidades, hospitais, hemocentros e policlínicas, por meio de uma territorialização que mira o acesso universal. Mas também é nas cidades que as desigualdades socioterritoriais se manifestam de forma mais grave, relegando às periferias e às zonas rurais, hoje imbricadas à vida urbana, a falta de acesso a equipamentos públicos como os centros de cultura, esporte, lazer e de acolhimento das populações economicamente mais vulneráveis.

Na plataforma, as propostas têm um limite de 500 dígitos para a redação, o que é pouco para se darem a conhecer por inteiro, por isso salientamos no título desse artigo a existência de uma sinergia e complementaridade entre três delas, o que não é visível à leitura das três separadamente.

As três propostas são as seguintes:

Programa Periferia Viva: “A Secretaria Nacional de Periferias propõe o Programa Periferia Viva, para articular todas as políticas públicas do Estado nos territórios periféricos e garantir a participação popular nas decisões. Nas periferias, não basta só um tipo de intervenção do Estado. São décadas de abandono, carências e vulnerabilidades. E também décadas de organização popular para exigir os direitos e criar soluções. O Periferia Viva é uma inovação do governo Lula para mudar a vida do povo das periferias do Brasil”.

Essa proposta enfatiza a necessidade de uma abordagem sistêmica para o enfrentamento da problemática complexa das periferias, além de posicionar o Estado como agente indutor das políticas de intervenção nestes territórios periféricos, com produção de cidades onde as comunidades beneficiárias atuam como protagonistas num processo participativo em que o Estado e a comunidade constroem as saídas para a melhoria dos territórios de forma sistêmica, agregadora e incremental.

Fruto de uma inovação necessária que nasce no Plano de Governo, se consolida no processo de campanha política e se materializa na instituição de uma Secretaria Nacional de Periferias na estrutura do governo federal, o Programa Periferia Viva inova ao incorporar a necessidade de traduzir em política pública o protagonismo da potência e da resistência que emerge das periferias em todas as suas nuances.

O Periferia Viva traduz a nova política do governo ao focalizar a aplicação do orçamento para esses territórios mais vulneráveis na forma de um programa multissetorial de base territorial. O programa avança para compor as clássicas intervenções de urbanização e prevenção de risco com um arranjo interministerial de articulação de equipamentos multifuncionais e organiza tudo isso na ponta de maneira assistida por uma ação de assessoria técnico-comunitária.

Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social – 1 Arquiteto Urbanista para cada 20 mil habitantes: “A proposta consiste na criação e implantação de Escritórios de Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social, e na contratação de um Arquiteto Urbanista para cada 20 mil habitantes, no intuito de planejar e promover a evolução das cidades brasileiras através da ATHIS, democratizando o acesso aos serviços de Arquitetura e Urbanismo à população e ao município como um espaço vivo em transformação”.

A proposta “2” acrescenta ao quebra-cabeças a estratégica questão territorial como dimensionadora da distribuição do trabalho do profissional de arquitetura frente aos desafios da Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (ATHIS).

A ATHIS é uma ferramenta capaz de criar um processo de cidadania com a participação direta do cliente in loco, essencial na construção da cidade, da moradia, do habitat e do meio ambiente. Fruto do desejo de ver expresso na Política Pública o Direito à Arquitetura, a proposta é convergente com a necessidade de aproximar o profissional das questões ambientais e de saúde, cujos passivos são facilmente observáveis ante a emergência climática.

Determinados legalmente como direitos constitucionais inalienáveis, a educação e a saúde são dotadas de sistemas públicos e gratuitos, mesmo existindo a educação e a saúde privadas. A proposta aponta como imprescindível que exista também em nosso País um sistema público e gratuito que assegure a moradia mesmo que exista o mercado imobiliário privado.

Duas coisas a considerar nesse contexto:

(a) o fato de que, mesmo levando em conta a importância estratégica do Programa Minha Casa, Minha Vida, estima-se que as necessidades habitacionais se concentram, em quase 80% dos casos, em reformas estruturais relacionadas à salubridade, acessibilidade ou segurança de moradias já construídas, o que aumenta a responsabilidade por uma política nacional de assistência técnica que apresente soluções para redução de domicílios precários pelo País; e

(b) que, ao definir um território de abrangência para o trabalho de um arquiteto urbanista, a proposta alude ao seu papel na dinâmica do desenvolvimento desse território no plano urbanístico para um acesso ao Direito à Cidade, que só poderá ser construído nas bases do que propõe a proposta anterior do Programa Periferia Viva: a participação popular e a colaboração do Estado.

Nesses termos, subentende-se que o profissional assumiria o papel protagonista nas cidades e no campo, tanto no que envolve a ATHIS na dimensão da vida individual e familiar, quanto no que envolve o acesso ao Direito à Cidade na dimensão da vida coletiva, o que encarna um projeto cívico participativo que se alinha à proposta “1”.

Rede de equipamentos públicos para a cultura, o esporte, o lazer e o acolhimento de vulneráveis: Que equipamentos sociais e políticas compõem a Nova Rede? Equipamentos e políticas para a cultura, o esporte e o lazer para a juventude: Auditórios multiúso (cinema, apresentações escolares, teatro); Bibliotecas (midiatecas, infotecas); Campos desportivos (ginásios, pistas de skate, pistas de atletismo); Piscinas públicas; Brinquedotecas comunitárias; Escolas (música, dança artes cênica e visuais) e Centros culturais; Museus (ecológico, de memória da comunidade); Centros de convivência e lazer.

A terceira proposta sumariza necessidades das periferias raramente atendidas no âmbito das políticas públicas, o que condiciona uma falta de acesso à contemporaneidade que contribui para o tremendo mal-estar social em que está mergulhado o Brasil.

A Rede, inspirada na síntese de 40 anos de lutas de um bairro popular de Natal (Mãe Luíza)[2] foi, sob o nome de Rede Canto – Territórios de Cidadania, um dos projetos premiados pelo Instituto Lula no concurso Territórios e Cidades Democráticas. Do ponto de vista organizativo, a proposta enxerga essa nova rede de equipamentos sociais implantada em territórios de 20.000 habitantes, o que coincide com a proposta “2”, acrescentando um significado suplementar à presença do arquiteto junto à equipe multidisciplinar no território enquanto artífice do desenvolvimento territorial e da participação popular para o Direito à Cidade.

A nova Rede prevê concurso arquitetônico para a escolha dos equipamentos sociais e, tal como na proposta “1”, estabelece a participação popular para a escolha da ordem de implantação dos equipamentos sociais para a cultura, o esporte e o lazer, ou o acolhimento de vulneráveis nas periferias, conforme a prioridade de cada território e em consonância com as aspirações da comunidade.

Questão central para uma virada sistêmica na sociedade brasileira que elevaria consideravelmente o desenvolvimento humano no Brasil, o território permite definir uma sustentabilidade orçamentária para a proposta. De fato, se consideramos o País com seus 210 milhões de habitantes, teremos 70 milhões de pessoas no terço mais vulnerável da população ou 3.500 territórios de 20.000 habitantes.

Conforme o artigo publicado nesta CartaCapital Como a rede pública pode transformar o Brasil[3], se pensarmos numa liquidez anual para o investimento em cada território correspondendo a três milhões de reais (o suficiente para construir em cada área um equipamento de pelo menos 1.000 metros quadrados no melhor padrão construtivo), atingiríamos 10,5 bilhões de reais por ano, o que corresponde a 0,25% do orçamento anual da União, que ultrapassou os cinco trilhões de reais em 2023, para uma agenda indiscutivelmente prioritária capaz de produzir e fortalecer a cidadania entre os mais pobres, massa crítica imprescindível para a sustentação da democracia e o incremento da inclusão social.

Cláudia Pires é Arquiteta Urbanista atuante no Eixo Rio-BH, Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Geociências da UFMG,  ativista da Rede ODS Brasil do Movimento dos Arquitetos, atua no METRODS- Observatório Metropolitano do Desenvolvimento Sustentável e do OCA IAB-RJ Baixada. Em 2022 foi eleita Arquiteta do Ano pela FNA. Comentarista de Urbanismo na Rádio CBN.

Flávio Tavares é urbanista e atual Coordenador-Geral de Articulação e Planejamento da Secretaria Nacional de Periferias do Ministério das Cidades. Integra a Rede BrCidades e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/PB).

Ion de Andrade é médico epidemiologista e pesquisador da Escola de Saúde Pública do RN; é ativista dos movimentos urbanos em Natal e colaborador da Rede BrCidades.[4]

Pablo Fernandes é arquiteto urbanista, presidente do IAB/AL e membro da coordenação da Rede BrCidades Maceió.

[1]     https://www.gov.br/planejamento/pt-br/assuntos/plano-plurianual-ppa

[2]     https://www.cartacapital.com.br/blogs/br-cidades/inclusao-bem-estar-e-direito-a-cidade-a-agenda-municipal-progressista-para-2020/

[3]     https://www.cartacapital.com.br/blogs/br-cidades/como-a-rede-publica-pode-transformar-o-brasil/.

[4] www.brcidades.org

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