Artigo
Quando o funk toca, a cidade se move: a música que transforma o território em pista de luta
Entre a marginalização e o status de referência, o gênero tem sido internacionalmente reconhecido e é uma das principais expressões de juventudes das periferias


Primeiro gênero de música eletrônica genuinamente brasileiro, o funk nasceu e se desenvolveu nas favelas e nas periferias do Rio de Janeiro a partir do fim dos anos 1980. Com origens no Miami Bass e influências do soul e do rap, o ritmo ganhou contornos próprios, combinando batidas eletrônicas dançantes e letras em português que narram a vida nas periferias. Mais que um estilo musical, o funk é um fenômeno estético, político e cultural que expressa experiências da juventude negra e periférica – geralmente negligenciada pelas políticas públicas e estigmatizada pelo imaginário social dominante.
Com letras que abordam desigualdades, desejos, protestos e afirmações identitárias, o funk dá voz a um cotidiano frequentemente invisibilizado. Sua presença no espaço público – em bailes e fluxos – mobiliza tensões sobre quem tem direito à cidade e como esse direito se manifesta. Essas manifestações culturais ainda são amplamente associadas à desordem e à criminalidade – fruto de preconceitos de classe e raça – e frequentemente reprimidas por ações policiais, transformando bailes e fluxos em arenas de conflito urbano. O funk, assim, não apenas retrata a realidade das periferias, mas também representa uma forma de apropriação simbólica e material da cidade por populações historicamente marginalizadas.
Para compreender esse processo, é preciso voltar aos anos 1970 e 1980, quando os Bailes Black ocupavam clubes nas periferias cariocas. A partir da reapropriação dos ritmos que tocavam nos bailes — inicialmente o soul e o funk norte-americano e, a partir dos anos 1980, o Miami Bass —, combinados a influências nacionais como o samba e o jongo, a juventude negra carioca forjou os elementos que consolidaram o funk: a produção musical local, letras em português e forte vínculo com o território e a comunidade. A voz da favela começava a ecoar nos beats eletrônicos — e a incomodar.
Nos anos 1990, o funk passou a ser alvo de perseguição. Episódios como os “arrastões” na zona sul carioca, em 1992, foram amplamente noticiados e associados ao funk, criando a imagem do “funkeiro” como um “delinquente” e uma “ameaça à ordem”, consolidando um estigma que persiste até hoje.
Ainda assim, em 1994, o funk invadiu a programação da TV Globo, com apresentações em programas da Xuxa e o destaque de artistas como DJ Marlboro. No mesmo período, a produtora Furacão 2000 estreou seu próprio programa na televisão, desempenhando um papel fundamental na difusão do gênero. E, ao longo dos anos 1990, os bailes passaram a atrair jovens de diversas regiões da cidade, rompendo barreiras territoriais e sociais.
Nos anos 2000, a explosão do acesso à internet impulsionou ainda mais a popularidade do funk. A distribuição digital permitiu que artistas circulassem sem depender das rádios ou da TV, geralmente controladas por curadores das classes média e alta. A juventude passou a consumir diretamente o que a representava, e o funk se transformou em um dos gêneros mais populares do País, com o surgimento de diversos subgêneros.
Nesse período, o fortalecimento do “funk sensual” ou “funk putaria” colocou muitas mulheres no centro da cena — alguns exemplos são Deize Tigrona, Tati Quebra-Barraco e Valesca Popozuda. Se antes as mulheres já eram parte essencial da cultura funk como dançarinas e público, passaram a cantar sobre o cotidiano, inclusive sobre relações de poder, gênero e sexualidade. Esse movimento também abriu espaço para artistas LGBTQIAP+, algo até então inédito para uma cultura popular de massa. No início dos anos 2000, a dupla MC Serginho e Lacraia emplacou hits e esteve em programas de televisão; já a partir da década de 2010, surgiram nomes como Linn da Quebrada, MC Xuxu, Mulher Pepita, Lia Clark e Glória Groove.
Além de uma manifestação musical, o funk também se difundiu através da moda e da expressão estética. O estilo Mandrake (ou Chavoso) e o de Cria, dois exemplos de identidades visuais emblemáticas das periferias de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente, têm sido alvo de apropriação e “whitewashing” e se transformado em produtos de consumo de massa para classes sociais mais altas nos últimos anos — replicados em festivais, passarelas e campanhas de moda, muitas vezes descontextualizados e esvaziados de seu sentido político.
A estética Mandrake, caracterizada por óculos espelhados, tênis de mola, camisetas de futebol estilizadas, correntes, cortes de cabelo e sobrancelhas com risquinho, ressignifica símbolos de marcas hegemônicas como afirmação identitária da juventude periférica paulista. Já o estilo de Cria (proveniente de “criado na comunidade”), marcado pelo cabelo descolorido “loiro pivete” e por roupas de apelo “praiano” — bermuda, cropped, biquíni, chinelo — expressa a reivindicação da presença periférica em espaços como a praia ou o “asfalto”. Ao se apropriar desses signos, a juventude transforma a cidade em palco de suas linguagens, rompendo com as divisões entre centro e periferia, praia e favela.
Hoje, o gênero atravessa fronteiras. O funk brasileiro tem se projetado no cenário internacional, com artistas como Anitta e Ludmilla realizando turnês fora do Brasil, e DJs se apresentando em festivais por Europa e América Latina. Desde 2024, o festival “Só Track Boa” – um dos maiores eventos de música eletrônica do País – passou a incluir o funk em sua programação. A rádio inglesa NTS lançou uma compilação internacional dedicada ao funk de São Paulo, intitulada funk.BR – São Paulo. E, em 2025, a Beatport, maior plataforma mundial de venda de faixas para DJs, incluiu o gênero brasileiro em seu catálogo, ampliando seu alcance global.
Paralelamente, o funk vem ganhando espaço na cena clubber nacional e internacional, historicamente dominada por gêneros como techno, house e drum and bass. DJs e produtores têm incorporado elementos do funk em suas produções, cruzando limites sonoros e desafiando dicotomias entre popular e alternativo, underground e mainstream. Esse movimento reflete uma reorganização simbólica da música eletrônica e da própria noção de pertencimento urbano.
Ao mesmo tempo, surgem tensões importantes no funk por meio do fortalecimento de vozes periféricas, negras e LGBTQIAP+ disruptivas, como Irmãs de Pau, Katy da Voz e as Abusadas, dentre outras, que utilizam o gênero como “arma política”, abordando temas como transfeminismo, racismo, identidade, desejo, prazer e autonomia de corpos dissidentes.
Esse movimento também é impulsionado por coletivos e festas como Chernobyl, Helipa LGBT, Batekoo e Ralachão, que ocupam territórios simbólicos e físicos para celebrar a cultura negra, queer e periférica. E, dentro do processo de reconhecimento do funk como música eletrônica, festas como Mamba Negra, Tesãozinho Inicial e Trevvo têm redesenhado esse panorama ao potencializar o funk como linguagem política e estética nas pistas, evidenciando o protagonismo periférico e transformando as pistas em territórios de visibilidade e acolhimento LGBTQIAP+.
Mas nem o reconhecimento global e a crescente valorização em âmbito nacional apagaram os estigmas. A associação entre funk e crime ainda permeia o senso comum. E o alvo não é apenas a música, mas o grupo social que a produz e o contexto de onde ela emerge. O preconceito recai sobre a favela, seus moradores e a forma como ocupam os espaços da cidade. Afinal, o funk não é neutro: ele denuncia, incomoda e desafia. E a repressão continua.
Nos anos 2010, os “rolezinhos” que reuniram jovens periféricos em shoppings e parques, sob trilha sonora do funk, foram reprimidos pela polícia. Em 2019, entre as milhares de operações policiais realizadas em bailes funk nas grandes cidades brasileiras, a ação da PM no Baile da DZ7, em Paraisópolis (SP), resultou na morte de nove jovens – o projeto “Os 9 que Perdemos” realiza um trabalho fundamental de memória e denúncia. No mesmo ano, o DJ Rennan da Penha, criador do Baile da Gaiola, teve a prisão decretada por associação ao tráfico, depois revertida. Em 2025, MC Poze do Rodo foi preso por apologia ao crime e liberado dias depois. O nome de MC Oruam – que transita entre funk, rap e trap –, por sua vez, tem sido utilizado para rotular projetos de lei que visam proibir a contratação de artistas que supostamente façam “apologia ao crime”.
Embora o funk não seja criminalizado por lei, normas sobre “poluição sonora” e “uso do espaço público” são frequentemente usadas para justificar a repressão a bailes e fluxos. Tipificações como “associação criminosa” e “apologia ao crime” são mobilizadas, sob critérios jurídicos pouco objetivos, promovendo a criminalização individual em usos seletivos da legalidade. Tais estratégias expressam respostas superficiais a problemas de segurança pública que afetam toda a dinâmica das cidades brasileiras – especialmente para as juventudes periféricas.
Ainda assim, emergem formas de resistência, mobilização e incidência política. Desde os seus primórdios, o funk é espaço de articulação comunitária. Coletivos, frentes de ativismo, organizações culturais e lideranças periféricas atuam na defesa de direitos, na luta antirracista, no feminismo, no enfrentamento da violência policial e na valorização de políticas públicas para a cultura da periferia. A Frente Nacional de Mulheres no Funk é uma destas organizações, articulando iniciativas como a Frente Parlamentar do Funk na Assembleia Legislativa de São Paulo.
Esses agentes culturais constroem sentidos diversos para o funk e seus territórios, tensionando a exclusão urbana e afirmando outras possibilidades de futuro. Nesse contexto, é fundamental retomar o conceito de “direito à cidade”, formulado por Henri Lefebvre: mais do que usufruir fisicamente dos espaços urbanos, trata-se do direito de participar ativamente da sua produção e transformação – um direito à vida urbana em sua renovação constante, à possibilidade de decidir como a cidade é organizada, vivida e compartilhada.
Esse direito, no entanto, é distribuído de forma desigual. O acesso à moradia, ao lazer, à informação e à segurança é precário nas periferias, e a cidade capitalista é, por definição, um espaço de disputa – e o direito à cidade é uma luta cotidiana. O funk, por sua vez, torna visíveis as desigualdades sociais e violências de Estado e propõe uma nova gramática urbana, na qual as vozes das periferias reivindicam protagonismo. Por meio de letras, redes sociais, bailes e fluxos, a cultura do funk pauta outros projetos de cidade, nos quais o lazer, a arte e o encontro não são privilégios de poucos, mas direitos de todos.
Não por acaso, há tentativas recorrentes de silenciar o funk, como já ocorreu com outras expressões culturais negras, como o samba, o hip hop e a capoeira. Apesar disso, o funk segue e resiste. Produzido majoritariamente por jovens negros e pobres, o movimento sobreviveu às tentativas de apagamento, mantendo-se como potência criativa e política.
Desde 2024, 12 de julho marca oficialmente o Dia Nacional do Funk, fruto da luta de artistas, coletivos e comunidades que transformaram perseguição em resistência, e resistência em arte. Este reconhecimento, ainda simbólico, traz visibilidade e poderá ser importante na luta por direitos e políticas públicas. O funk é som, barulho, corpo, desejo, denúncia, cidade e direito.
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