BrCidades

A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.

BrCidades

Minha Casa Minha Vida tem nova chance para solucionar a crise urbana

O programa habitacional precisa produzir moradia em bairros com infraestrutura urbana plena

Apoie Siga-nos no

Os escorregamentos, enxurradas de lama e inundações ocorridos em São Sebastião em março de 2023 no litoral norte de São Paulo tornaram ainda mais evidente a necessidade de uma nova política habitacional no País. Essa região entre São Sebastião e Bertioga é o exemplo mais claro – e perverso – do processo de urbanização brasileiro. Para facilitar o acesso ao mais belo litoral do Brasil, o estado construiu na região (com recursos públicos, claro) o trecho da rodovia Rio–Santos, promovendo uma enorme valorização dos terrenos e a consequente expulsão dos habitantes originais, caiçaras que viviam da pesca e moravam junto às praias. Essa expulsão se deu pela compra das posses a preço vil, às vezes associada ao terror dos jagunços contratados por grandes grupos imobiliários.

As famílias expulsas das praias atravessaram a estrada e se instalaram onde havia terreno de baixo custo disponível, perto dos empregos em casas de veraneio e pousadas instaladas nas praias. Nesse terrenos disponíveis, que eram as franjas da Serra do Mar naturalmente instáveis, foram instalados os bairros populares, todos sem infraestrutura urbana, obras de proteção contra enchentes e escorregamentos, ou serviços públicos como coleta de lixo. Em suma, sem investimento público. Diante disso, é óbvio que seja nesses bairros que ocorre o maior número de mortes quando vêm as chuvas fortes. Chuvas que, devido à crise climática, estão ainda mais fortes e frequentes.

Esse processo de urbanização e suas consequências, tão evidentes em São Sebastião, estão presentes todas as cidades brasileiras. Nos bairros com infraestrutura e boa localização, os lotes são caros e, aos pobres, só resta comprar ou ocupar terrenos ilegais, distantes, sem infraestrutura urbana e sujeitos a risco. Conforme a cidade se expande, a infraestrutura urbana pública chega nos bairros populares, os terrenos se valorizam e os pobres são expulsos para mais longe.

Mesmo os programas habitacionais públicos são concebidos de modo a reforçar esse processo. Muitas vezes, os conjuntos desses programas são construídos nas periferias mais distantes, onde a terra é barata, e são destinados aos moradores de áreas de risco, ou para aqueles envolvidos em conflitos fundiários nos bairros valorizados, ou aos que são expulsos dos bairros de interesse do mercado para a implantação da infraestrutura urbana, principalmente onde há grandes obras de mobilidade. Na prática, os programas habitacionais reforçam o processo de expulsão dos pobres para as periferias.

É o que se viu agora em São Sebastião. A maior destruição ocorreu na Vila Sahy, junto à praia da Barra do Sahy. O governador do estado de São Paulo abrigou as famílias atingidas em um conjunto habitacional na periferia da cidade vizinha, Bertioga – a 43 quilômetros de distância! – e propõe  construir novos conjuntos em São Sebastião, distante 47 quilômetros. Ninguém fala em desapropriar terrenos na própria praia de Barra do Sahy. Sem desatar o nó da terra – como sempre ensinou a Professora Ermínia Maricato – nenhuma política habitacional vai avançar em direção a cidades mais justas, equilibradas e capazes de se adaptar à crise climática.

Com o relançamento do programa Minha Casa Minha Vida, é possível tentar algo que não foi feito na fase anterior do programa: começar a desatar esse nó. Como? Tornando obrigatório que os novos conjuntos sejam implantados nos bairros consolidados, construindo, portanto, em terrenos caros!

Repetindo: o programa habitacional precisa produzir moradia em bairros com infraestrutura urbana plena, com equipamentos sociais básicos e onde haja empregos e transporte público de qualidade. Ou seja, em áreas centrais. Onde os terrenos são caros!

Habitação é um serviço social, como a saúde e o critério de escolha do local onde será construído o equipamento que dá suporte para esse serviço social não pode ser o preço do terreno, mas sim as demandas das pessoas, como as necessidades de morar perto do emprego, da escola, do hospital, do centro cultural, do parque público, por exemplo. O sistema deve funcionar da mesma maneira que se faz para escolher o local para implantação de um novo hospital: a escolha nunca é pelo preço do terreno, mesmo porque, se assim fosse, nossas periferias estariam cheias de hospitais.

A construção dos conjuntos habitacionais em terrenos valorizados apresenta dois grandes problemas: os recursos disponíveis vão permitir atender a um menor número de famílias; e os imóveis, construídos em bairros valorizados, poderão ser vendidos pelas famílias beneficiadas para pessoas com maior poder econômico, em um processo de expulsão semelhante ao que ocorreu com os caiçaras no litoral paulista.

Para atenuar o primeiro efeito, devemos usar os terrenos valorizados, mas que podem ser disponibilizados para o programa gratuitamente: são os terrenos e os edifícios públicos ociosos ou subutilizados. Em vez de privatizar a preço de banana, vendendo ou entregando para as Parcerias Público Privadas, como é central na política conservadora, devemos destinar os imóveis públicos para o Programa Minha Casa Minha Vida. Além disso, fazer valer a lei e desapropriar os imóveis privados abandonados com o pagamento em títulos da dívida pública, para que cumpram sua função social se transformando em habitação popular.

Já o segundo problema pode ser tratado por meio de uma modalidade de atendimento habitacional que o novo Programa Minha Casa Minha Vida já está prevendo, que é a locação social. O imóvel construído com recurso público em terreno valorizado permanece de domínio público e as regras de acesso devem ser muito claras: faixa de renda, vulnerabilidade da família e necessidade. Em outras palavras, pode ser usado mas não pode ser vendido. A gestão condominial, assim como a gestão social, seria feita diretamente pela prefeitura, como em alguns conjuntos habitacionais no Município de São Paulo, ou por meio de termos de fomento envolvendo a prefeitura e organizações sociais sem fins lucrativos, num tipo de parceria que movimentos de moradia em área central na cidade de São Paulo tem reivindicado e chamado de PPPop – parceria público popular.

Ao reconstruir o programa Minha Casa Minha Vida, o governo federal tem a oportunidade de começar a desatar o nó da terra, resgatando a maior qualidade do programa original, que foi viabilizar o acesso à moradia para milhões de famílias pobres, mas também superando seu maior defeito, que foi a construção de conjuntos habitacionais fora da cidade.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo