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Licença para destruir: A ameaça real do PL da Devastação

Sob a justificativa de acelerar o desenvolvimento, o PL 2159/2021 desmonta pilares da política ambiental brasileira e abre caminho para tragédias anunciadas

Licença para destruir: A ameaça real do PL da Devastação
Licença para destruir: A ameaça real do PL da Devastação
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP). Foto: Andressa Anholete/Agência Senado
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“Devastando a sede desses matagais. Devorando árvores, pensamentos, seguindo a linha” – Fagner e Zé Ramalho, 1980

 O PL da Devastação, como ficou conhecido o Projeto de Lei 2159/2021, trata de alterações nas regras de licenciamento ambiental no Brasil com potencial de impactar de modo profundo a condução da política ambiental. O texto foi aprovado em 21 de maio no Senado com 54 votos favoráveis e 13 contrários. Especialistas, lideranças sociais, ambientalistas e mesmo integrantes do Ministério do Meio Ambiente demonstram extrema preocupação com o avanço do PL, que agora caminha para a Câmara dos Deputados. Apesar de a relatoria ter ficado a cargo da senadora Tereza Cristina (PP-MS), sua proposição foi compartilhada.

Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, filha de ex-governadores e senadores por Mato Grosso do Sul, é empresária, engenheira agrônoma e ruralista. Ela também foi ministra da Agricultura durante o governo de Jair Bolsonaro, indicada pela Frente Parlamentar Agropecuária. Evidentemente, é defensora dos interesses do setor.

É importante destacar que seu colega de casa Davi Alcolumbre (União-AP) propôs uma mudança no texto do PL, criando o licenciamento especial. Ambos votaram a favor do impeachment da então presidenta Dilma Rousseff. Considero importante pontuar esses vínculos políticos para entender o contexto do PL.

Os interesses por trás de propositores, setores do agro e aqueles que se opõem ao PL ficam evidentes diante de uma leitura atenta e referenciada a partir do modo como são concedidos licenciamentos no Brasil. Sem nenhuma surpresa, a justificativa para sua aprovação orbita em torno da ideia de desburocratizar processos que atrapalham o desenvolvimento do País. Seja qual for a ideia de desenvolvimento aqui perseguida, certamente ela não contempla os interesses mais imediatos da política ambiental brasileira em vigor em seus marcos principais e compromissos de agenda, como a Agenda 2030.

Na perspectiva predatória capitalista, o que realmente se deseja são a redução de custos e a obtenção de maior previsibilidade de retorno dos investimentos. Em sua busca incessante pela manutenção da geração de mais-valia, o capital necessita dessa previsibilidade. Lição básica para qualquer leitura, ainda que superficial, da produção marxiana. Os riscos e as ameaças dessa desburocratização dos processos de concessão de licenças são óbvios para movimentos ambientalistas, povos originários, MMA, Funai e demais agentes sociais estudiosos da questão ambiental no Brasil.

O enfraquecimento dos órgãos de licenciamento levaria ao aumento da degradação de recursos naturais, promoveria desastres semelhantes ao de Brumadinho e violaria direitos de dezenas de comunidades tradicionais que se avizinhem de empreendimentos agropecuários e de mineração, por exemplo. É o caminho da “autolicença” — ou, nos termos do PL, da Licença por Adesão e Compromisso — nas atividades consideradas de alto impacto, que não demandariam, segundo o novo marco regulatório, análise prévia e participação social.

O conflito é sintomático da disputa do tipo de projeto que se deseja para o Brasil. Portanto, trata-se de contornos neoliberais em busca da redução dos controles do Estado, que os interesses do agro e de mineradoras assumem na discussão do PL da Devastação. A lógica é: “menos Estado, mais desenvolvimento”. Nada mais falacioso em um país de economia dependente e periférica, constantemente empurrado para manter sua posição de fornecedor de matéria prima no comércio internacional.

Como é o licenciamento no Brasil

O licenciamento no Brasil possui marcos regulatórios eficazes. Tal política funciona de modo descentralizado e com competências federais, estaduais e municipais, a depender do potencial de impacto da atividade ou do empreendimento. Na escala federal, o Ibama cumpre esse papel, principalmente no que se refere aos empreendimentos que ultrapassam limites estaduais, terras indígenas ou que afetem unidades de conservação federais.

Na escala estadual, existem normas e regramentos que administram licenciamentos, bem como na municipal exerce-se controle naqueles com impacto local, conforme a Lei Complementar 140 de 2011. No Brasil, o processo de licenciamento ambiental pode ser dividido em pelo menos três fases principais:

1) A licença prévia, durante a qual é avaliada a viabilidade ambiental do projeto por meio do estudo da localização do empreendimento e mesmo de sua concepção. Aqui, são realizados os estudos preliminares, como o EIA e seu RIMA. É a etapa em que se definem diretrizes e condições que devem ser cumpridas na fase seguinte de licenciamento;

2) A licença de instalação, que é a fase na qual se autoriza ou não o início da construção, da implantação ou da ampliação do empreendimento. Isso, claro, após o cumprimento das condicionantes na fase anterior de licenciamento prévio. Nesta fase, a operação ainda não está autorizada;

3) A licença de operação, durante a qual se concede a autorização para o início das atividades do empreendimento. A autorização é provisória, pois requer renovação regular.

Há outras licenças menores e institutos de regulação como a Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC), a Licença Ambiental Simplificada (LAS), a Dispensa de Licenciamento Ambiental, Estudos Ambientais e Participação Social. Quando os projetos têm maior impacto, são realizadas audiências públicas a fim de que a sociedade e as comunidades afetadas expressem suas opiniões e suas preocupações.

O PL 2159/2021 foi proposto visando, principalmente, a flexibilizar e promover a desregulamentação dessas regras. A justificativa usada é que as atuais regras dificultam e atrasam a implantação de empreendimentos que favoreceriam o desenvolvimento do País. Alterações pontuais, como a ampliação da concessão de Licença por Adesão e Compromisso (LAC) ou o chamado “autolicenciamento” para empreendimentos de médio e alto impacto poluidor, são vistas como potencializadoras de desastres ambientais. Nessa modalidade, concede-se ao empreendedor simplesmente a possibilidade de ele se “autolicenciar”, sem atuação dos órgãos ambientais.

Além dessa ampliação, o PL da Devastação isenta uma série de atividades da necessidade de licenciamento, incluindo muitas do setor agropecuário, da pecuária extensiva de pequeno porte, de obras de manutenção e ampliação de rodovias e infraestruturas de distribuição de energia. O PL cria a licença ambiental especial, que autoriza empreendimentos de grande impacto ambiental a terem processos mais rápidos, quando considerados estratégicos pelo governo federal. Agora, imaginemos a realidade de um governo cujo projeto de País “beba” da mesma fonte da qual veio a ideia de “passar a boiada” enquanto a sociedade está “distraída” com notícias de pandemias.

A participação social também é atacada pelo PL da Devastação. As ações de órgãos como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em processos de licenciamento que afetem terras indígenas (em processo de demarcação) e Unidades de Conservação tornam-se não vinculantes durante processo de licenciamento.

Principais Mudanças

Em única arremetida, o PL da devastação fragiliza modos de vida das comunidades de territórios em processo de demarcação e aumenta riscos de tragédias ambientais e perdas humanas. Dispensa em casos específicos a condução de um processo de licenciamento transparente e participativo, oferecendo aos empresários a oportunidade de não se comprometer com contramedidas de recuperação em caso de danos ambientais, além de enfraquecer órgãos como Ibama e Ministério do Meio ambiente. Especialistas indicam um retrocesso de mais de 40 anos na política ambiental brasileira caso o PL seja aprovado e sancionado pelo presidente Lula (PT).

Uma série de ações têm sido empreendidas para barrar o PL. Setores da sociedade civil, governos estaduais, órgãos e setores do próprio governo se mobilizam para impedir o que pode ser considerado, sem nenhum exagero, a maior devastação dos esforços de 40 anos pela proteção do meio ambiente no Brasil.

O que temos visto são protestos de rua e manifestações, campanhas online, abaixo-assinados, plataformas digitais, envio de e-mails de pressão a parlamentares, acampamentos de povos indígenas, notas de repúdio, manifestos públicos de ONGs — como Greenpeace, Observatório do Clima, SOS Mata Atlântica, WWF-Brasil e Transparência Internacional —, documentos e análises demonstrativos dos impactos negativos do PL na legislação ambiental e muitas outras frentes.

Por meio da ministra Marina Silva (Rede) e de sua equipe, o Ministério do Meio Ambiente tem se posicionado firmemente contra o texto atual do PL, alertando para os riscos que ele representa para a política ambiental e climática do País. Por meio da emissão de pareceres, recomendações contra o projeto e apontando inconstitucionalidades e riscos à legislação ambiental, o Ministério Público Federal age também para impedir o avanço do PL da devastação.

Mesmo entre congressistas, há uma movimentação por meio da apresentação de emendas e destaques, embora a mitigação de seus efeitos não seja o que se espera de um Congresso eleito para defender os interesses da maioria, e não de um setor privilegiado pela aprovação do PL.

Se aprovado, o PL da Devastação permitirá, em único movimento, que empresas de alto impacto ambiental declarem sua própria conformidade, sem as devidas análise técnica e fiscalização prévia dos órgãos ambientais, o que abriria as portas para desastres e negligência; para dispensar o licenciamento para diversas atividades, como grandes obras e atividades agropecuárias, aumentando o risco de desmatamento e poluição; para limitar a participação de órgãos de proteção; e para acelerar projetos estratégicos com menos rigor. Isso significaria menos proteção para a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica e todos os nossos ecossistemas, além de representar maior risco de enchentes, secas e perda da biodiversidade

O que fazer? Pressão! Forçar a conjuntura.

A conjuntura nada mais é que a movimentação de blocos históricos de interesse. Ela pode e deve ser mudada, mas para isso é preciso mover-se como cidadão, movimento e governo, seja pressionando os deputados federais do seu estado — por e-mail, redes sociais ou telefone —, participando de mobilizações de rua, campanhas online, compartilhando textos como este ou mesmo debatendo em sala de aula com seus alunos. Só há uma forma de barrar a devastação pensada pelo PL: o “não” coletivo e com igual força ao retrocesso que ele busca.

Em 13 de Julho, em todo o Brasil, diremos não ao PL da Devastação.

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