Blog do Sócio
O dia em que fui falar sobre racismo na Fundação Casa
Ao passar pelos portões de ferro, descobri que a fundação destinada a jovens de 12 a 21 anos pode ser tudo, menos ‘casa’


Fui convidado por uma amiga a ir à Fundação Casa falar sobre racismo. Quando você chega, dá de cara com uma porta de ferro enorme, depois outra. Na verdade, é um corredor pequeno com duas portas onde você deixa seus pertences e entra.
Deixados os pertences é a hora das “trancas”, grandes portões de ferro, com grades de polegadas enormes. Foram quatro trancas. Cheguei à sala onde estavam os meninos, dei boa tarde e fiz questão de dar a mão para os 23 adolescentes que estavam na sala. Eram quatro técnicos da fundação, um educador, eu e minha amiga.
Logo que entrei eles estavam conversando sobre feminicídio. Um menino estava tentando “justificar” porque uma mulher morre. Complicado explicar para um adolescente que o fato de ela ter traído alguém não justifica a morte. Minha amiga tentou argumentar, fez colocações pertinentes sobre o caso, mas, ele não deu ouvidos.
Pedi a palavra, disse que nós homens fomos criados para poder tudo, inclusive trair sem ser questionado, enquanto a mulher, essa “deve” ser submissa a tudo isso. Disse a ele que estava errada a lógica da traição, falei sobre números, disse que a maioria das mulheres morrem não por traição e sim por conta do “não”, o “não” que elas dizem e que muitos homens, na verdade a grande maioria, não aceita.
Disse que elas têm tanto direito quanto nós homens. Engraçado como a mim deram atenção. Na verdade, isso prova mais uma vez que nós homens temos o dever de falar sobre a violência cometida contra as mulheres e procurar os nossos amigos e refletirmos nossas atitudes e ações. O machismo é foda! O machismo ferra muita coisa e temos, nós homens, a obrigação de discutir isso.
Vamos falar de racismo. Primeiro que a Fundação Casa tem cor: ela é preta. Dos 23 adolescentes dentro da sala, 16 eram pretos. Sim, 16 eram pretos.
Começo a fazer um recorte histórico do racismo, desde as leis de vadiagem que prendiam vários meninos pretos até uma comparação que venho usando. Disse a eles que se parar e reparar, da “quebrada” pra cidade as coisas vão ficando mais “claras”. Melhor dizendo, quando você está em um bairro periférico, ele tem um grande número de pessoas pretas e à medida que você vai para o centro da cidade a coisa fica mais “clara”. Isso nada mais é que o racismo estrutural.
Falamos sobre o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), falei sobre seus direitos, disse que no ECA tem mais deveres para os adultos cumprirem do que os adolescentes e que esse direito é sistematicamente violado pelo Estado a partir da sua irresponsabilidade de gestão.
Finalizamos o encontro e ali dentro estava um adolescente que acompanho desde a minha entrada nessa gestão de Conselho Tutelar. Desde que o conheço, ele ia todos os dias ao Conselho Tutelar, ligávamos o computador e ali ele ficava o tempo que achava bom, depois ia embora perambular pela rua, afinal, a rua era o seu grande quintal e nós éramos os amigos, aquele vizinho que o acolhia.
Dávamos vários conselhos, levamos ao médico, até no shopping o levamos para almoçar. Ele é usuário de substância psicoativa, sempre cuidamos dele, sempre corremos atrás para que ele fosse se cuidar, se tratar.
O destino quis que ele esteja internado hoje na Fundação. Quando fui me despedir lhe dei a mão, ele não queria a mão, queria um abraço. Então eu dei. Ele chora, eu engulo o choro, a voz embarga, tento falar mas não consigo, abraço novamente e digo: “Segura aí, estamos te esperando lá fora”. Saio e choro. Não dá para segurar. Quando se convive dia a dia com eles, sabemos o quanto lutam, e o pior, o quanto o Estado é falido.
Sei de todos os encaminhamentos, sei de tudo que foi tentado para ele. Falharam com ele. Saí de lá chorando, mas satisfeito com a conversa com os meninos. Meu dia, apesar da chuva, ficou um pouco mais quente. A Fundação Casa continua preta. A Fundação Casa é tudo menos casa.
Ah, o meu amigo que esta lá é mais um preto “também”.
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