Blog do Sócio

Não se engane: ser um simples vira-lata pode ser uma bela alegria

Quando me lembrei dos homens maus a gerir a nação, senti que tudo eles podem querer nos tirar, mas jamais tirarão nossa alegria de viver

Senado aprova aumento de pena para agressores de cães e gatos.
Apoie Siga-nos no

Peço desculpa se acaso tenha sido atraído pelo epíteto desse registro e vindo até essas linhas em busca de um trabalho científico com a confiabilidade que uma produção desse viés deveria sustentar. O que por aí vai escrito, ainda que me falte talento para essas descrições de identidade, passa mais por uma tentativa qualquer de literatura de um solitário observador dessa comédia da vida privada.

Nesse país dos vira-latas deve ser coisa das mais difíceis ser escritor e se sustentar por meio desse ofício incumbido em dar sentido às palavras. Imagino isso pela crescente descrença em qualquer coisa que se utilize do intelecto, do talento ou de fé verdadeira que se prolifera em meio às opiniões públicas, como se fosse um vírus mutante neomoderno que se espalha a terabytes de velocidade e vai minando o penoso trabalho das células artísticas e científicas dos organismos dessa região tropical.

A comédia começa pelo fato do principal emissor desse vírus ser, tão e somente, o órgão central do governo político. Ainda que nenhum governo tupiniquim tenha dedicado à educação ou à saúde atenção capaz de torná-la digna de seu povo, nenhum partido havia manifestado de forma pública sua real intenção do desmanche.

Se antes o que nos enojava era a hipocrisia dos marqueteiros dos horários políticos, hoje são as declarações de todo o núcleo duro do governo que transveste uma forma baixa de um ignorante maquiavelismo que nos faz duvidar do futuro da condição humana. Até aí só temos mais uma nova investida de tiranos ensandecidos no jogo dos poderes.

A pergunta que cabe diante do que esse novo cenário oferece de novo é: por que diante da fala aberta de destruição do acervo intelectual/artístico, da dizimação declarada e novamente praticada dos índios, dos negros e demais minorias, do desmonte das seguridades sociais angariadas com sangue de milhões de trabalhadores e de escravos, por que diante tudo isso o povo ainda não se rebelou?

Se quiseres uma resposta para essa pergunta, infelizmente só posso lhe oferecer um ombro amigo de consolação, pois também queria saber a resposta certa. E se acaso tenha lhe ocorrido a ideia de poder ser esse tal complexo de vira-lata – que também não sei definir – a razão desse povo se alienar tão facilmente de todo contexto político que lhe oprime, quem sou eu para dizer que não; mas confesso que não ouso dizer que sim.

Sobre a razão de uma alienação se proliferar tão livremente em meio a uma sociedade, talvez o motivo seja o mesmo em qualquer lugar do mundo: pouco nos ensinam a pensar.

Aprender sozinho é uma tarefa difícil que poucos indivíduos conseguem adquirir sem alguém dedicado a instruir. E infelizmente não basta ensinar a ler e escrever, tampouco adianta ensinar qualquer especialidade sem a razão da causa que se está ensinado, trazendo significado para quem está aprendendo.

Desse mal não sofremos apenas nós, povo brasileiro, pois uma educação verdadeiramente crítica não é fomentada por nenhum governo de nenhum país rico ou pobre do nosso mundo.

Bom exemplo disso se vê no filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, retrato de um colégio da alta burguesia que exigia o mais árduo dos treinamentos técnicos de seus alunos, futuros gestores da nação mais militarizada do mundo.

Naquela trama, a crítica trazida pela boa arte, por meio de um educador, reverberou as paredes inertes daquele colégio, causando rachaduras naquele sólido retrato da certeza científica.

Por esses dias, ouvindo uma conversa alheia sem ser notado, escutei a história que deu vida a esse devaneio: estava em um restaurante bar, um boteco com mesas montadas ao ar livre, com minha família jantando em nossa viagem de fim de ano. Uma prosa que se entabulava na mesa próxima a que jantava discutia esse cenário triste de nossos dias, e me tomou a atenção.

Na mesa contígua, três pessoas discutiam em torno dessa dúvida sobre o porquê do povo brasileiro não se revoltar com as atrocidades cotidianas. Uma das pessoas que integrava a mesa pegou o espírito da conversa e lembrou as multidões de autômatos indo para os shoppings a gastar seu décimo terceiro salário com muita alegria, recordou os torcedores flamenguistas a beira do êxtase a comemorar o título intercontinental, por fim, dos rebanhos urbanos que desciam juntos e apertados rumo ao litoral.

Depois dessa fala reinou um silêncio momentâneo na mesa. Esta pausa foi quebrada por uma voz que disse carregada, sutilmente, de certa certeza dúbia: vira-latas.

Confesso que quando ouvi a alcunha dada ao espírito da cultura popular brasileira, dita como desfeche de um colóquio promissor, dei um riso que bem poderia ter confessado meus ouvidos na espreita da conversa alheia.

E depois de ouvir essa conversa da mesa ao lado me peguei devaneando a tentar responder por que eu também não estava protestando? Por que é que não estava, naquele mesmo momento, jogando um coquetel molotov na sede do governo?

Tomei um copo de cerveja e olhei para meus pais que estavam rindo junto a meu irmão e a minha cunhada. Dei um suspiro benfazejo com alegria daquele momento, deixando aquela reflexão amarga ser escondida pelo sabor doce da ocasião.

Nesse tempo, um vira-lata veio nos olhar com aquela estudada fisionomia de pidão. Depois de ganhar uma sobra qualquer de nossa comida barata, o vira-lata deitou aconchegadamente perto de nossa mesa, armada na rua, e por ali ficou, resplandecendo bem-estar.

Comovido com aquelas cenas, pude responder as perguntas que pouco antes me fizera: você está aqui a celebrar a vida com sua família; como bom vira-lata que é. Quando me vi, feliz como o companheiro peludo deitado no chão duro sob meus pés, cercado pela família, senti certa alegria em ser um simples vira-lata.

Entendi que qualquer canto perto de boas pessoas pode se tornar um lar. E quando me lembrei dos homens maus a gerir a nação, roubando para si o que de direito é de todos, senti que tudo eles podem querer nos tirar, mas jamais tirarão nossa alegria de viver; e isso eles jamais terão.

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo