Blog do Sócio

A rotina de um voluntário na prevenção do suicídio

Em tempos de isolamento tecnológico – em que cada pessoa se esconde atrás de um smartphone – não raras vezes negligenciamos as demandas do próximo

Costumamos ouvir as pessoas? Identificamos pedidos de socorro? (Foto: Pixabay)
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Em tempos de isolamento tecnológico – em que cada pessoa se esconde atrás de um smartphone – não raras vezes negligenciamos as demandas do próximo

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São pontualmente 20h30min. O telefone chama e atendo logo no primeiro toque: – “CVV, boa noite.” Do outro lado da linha, um fio de voz. Quase um sussurro… – “Estou indo embora… preciso que você me faça companhia.”

Com muita dificuldade, reconheço a voz dela. Vamos chamá-la de Márcia. Diariamente Márcia ligava para o Centro de Valorização da Vida. Sempre dizia estar triste, mas raramente se aprofundava no assunto. Eu, voluntário do CVV, já me acostumara com suas ligações, mas pouco sabia da vida de Márcia. Ela dizia que não me contaria detalhes de sua vida enquanto não soubesse detalhes da minha.

Na verdade, o voluntário do CVV é orientado a não se expor. No máximo, dizemos nosso primeiro nome. As conversas diárias com Márcia nunca passavam de 20 minutos. Ela apenas falava de sua tristeza e solidão. No final, sempre dizia que gostava de me ouvir antes de dormir. Agradecia e desligava o telefone.

Mas dessa vez havia algo de diferente além da fraqueza em sua voz. Márcia havia tomado uma atitude drástica.

Agora ela não fez apenas uma simples menção em tentar por fim à vida. Fez pior. – “Estou ligando após ingerir uma overdose de remédios. Quero ter a certeza de que irei embora e você não poderá me impedir.” Disse Márcia.

Nós do CVV temos um protocolo a ser cumprido. A forma como dialogamos com quem nos telefona segue uma espécie de roteiro que não vem ao caso esmiuçar aqui. Mas percebi que dessa vez estaria correndo contra o relógio. Usar a psicologia recomendada nas conversas significaria perder tempo.

Abro mão do protocolo e vou direto ao assunto: – “Me passe seu endereço, Márcia.” – “Se eu fizer isso, você enviará socorro. Não quero ser socorrida.” – “Então por que você me ligou, Márcia?” – “Porque preciso que você fique comigo nesses últimos instantes. Gosto de sua companhia.” Resolvi inverter os papéis.

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Faria-me de vítima: – “Nesse caso, por que você fará isso comigo? Perder-te significaria uma derrota para mim. Você é minha amiga. Não saberei lidar com essa situação.” Após longos segundos de silêncio, Márcia diz: – “Não é minha intenção prejudicar quem sempre me apoiou e me escutou.” – “Mas você estará me prejudicando caso não passe seu endereço. Não conseguirei mais seguir adiante nesse serviço.” Completei.

Mais um período de um silêncio angustiante. Então Márcia me surpreende: – “Anote aí”. E começou a ditar o endereço. Nesse momento eu já pegava a outra linha. Os voluntários do CVV são identificados por um número. Com esse número, temos preferência nos serviços de emergência. Liguei para a polícia e repassei o endereço de Márcia. Retorno ao telefone e não escuto mais sua voz. Teria acontecido o pior? O tempo passou e nunca mais recebi suas ligações diárias.

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Meses depois, o telefone toca. Identifiquei de imediato a voz vigorosa e firme do outro lado da linha: – “Oi! Lembra de mim?” Era Márcia. – “No período em que estive internada no hospital, conheci gente em situação bem pior que a minha. Hoje sou voluntária nesse mesmo hospital. Estou ligando para pedir desculpas pelo sumiço e te agradecer por tudo. Estou curada.” Eu não queria passar para ela a emoção que sentia naquele momento.

O maior prêmio de todo o trabalho é saber que alcançamos nossos objetivos. Não importam quais sejam. Desejei-lhe uma boa noite e disse que estaria disponível para conversar outras vezes, se necessário. O trabalho dos atendentes voluntários do CVV salva muitas vidas. E em nosso cotidiano? Conversamos o suficiente com nossos amigos, familiares, ou colegas de trabalho? Costumamos ouvir as pessoas? Identificamos pedidos de socorro? Em tempos de isolamento tecnológico – em que cada pessoa se esconde atrás de um smartphone – não raras vezes negligenciamos as demandas do próximo.

Por mais que os diálogos escritos ocorram com mais intensidade através dos “whatsapps da vida”, nada substitui a conversa verbal. O tom da fala identifica necessidades que passam despercebidas na conversa escrita. O suspiro… a intensidade em determinadas palavras… as pausas pontuais… Nada disso pode ser identificado num texto frio, coroado de emoticons, digitado nas estradas padronizadas da web.

Por isso, comecemos a substituir o virtual pelo real. Desligue seu celular na mesa do jantar em família ou durante o coffee-break da empresa. Converse com seus filhos, seus pais, seus irmãos, seu vizinho de mesa no escritório. Fale. Mas antes de tudo, ouça!

* “Sócio” desde 2018

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