A Vida no Centro

Criada pelos jornalistas Denize Bacoccina e Clayton Melo, A Vida no Centro é uma startup de informação e impacto social sobre o Centro de São Paulo que produz reportagens, artigos, análises e entrevistas sobre tendências, cultura e comportamento nos centros urbanos.

A Vida no Centro

O casal que fugiu da Síria e virou referência na vida cultural de SP

Salim Mhanna e Oula Al-Saghir chegaram ao país com 300 dólares; hoje têm um bar que é um ponto multicultural e da diversidade em SP

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No número 124 da Praça Roosevelt, um dos points culturais do Centro de São Paulo, tem um cantinho da Palestina. No local funciona o Bab, bar que abriu as portas em junho de 2018 pelas mãos do casal de palestinos Salim Mhanna e Oula Al-Saghir. O nome Bab não foi uma escolha aleatória. A palavra significa, em árabe, “portas abertas”, exatamente o que Salim e Oula sentiram quando chegaram ao Brasil, em 2015, fugidos da guerra na Síria. E se eles encontraram as portas abertas no novo país e assim puderam recomeçar a vida, é isto o que eles querem proporcionar aos frequentadores do bar: um espaço livre de preconceitos, que acolhe todas as culturas, identidades e estilos. Um espaço da diversidade no coração de São Paulo.

Salim e Oula são dois personagens da nova onda de imigração no Brasil, um movimento que, assim como no passado, com italianos, japoneses, alemães, africanos, coreanos e bolivianos, entre outros povos, está enriquecendo a cultura do país com novos olhares e experiências. Esses novos imigrantes tentam encontrar aqui uma oportunidade de vida, com trabalho, moradia e lazer. No caso de pessoas em situação de refúgio, como palestinos e sírios, a mudança de país se dá por uma questão de sobrevivência e busca de segurança, e isso significa deixar para trás trabalho, família e amigos para começar tudo do zero num lugar distante e desconhecido.

Salim, por exemplo, era diretor de operações no Oriente Médio da ICFLix, a Netflix do mundo árabe, quando viu sua vida mudar radicalmente por causa da guerra na Síria. No momento em que estourou o conflito, em 2011, ele vivia em Damasco, capital do país, e namorava Oula fazia pouco tempo – os dois se casariam dali alguns meses.

Com a situação no país se agravando, Salim conseguiu transferência para trabalhar no Egito, onde ele nasceu – o plano era ele ir primeiro e se estabelecer para então Oula, que já estava grávida de Adam, o primeiro filho do casal, também se mudar. Mas, por questões políticas entre os dois países, houve mudanças nas regras de imigração e Oula, que nasceu na Síria, não pôde ir para o Egito, nem mesmo como turista. Assim, por muito tempo eles só se comunicavam pela internet.

O primeiro filho

Nesse intervalo Adam nasceu, mas Salim só pôde conhecê-lo um ano e meio depois, no aeroporto do Cairo, quando finalmente Oula conseguiu entrar no Egito. “Eu chorei muito no aeroporto quando vi meu filho pela primeira vez”, diz Salim Mhanna.

A família então passou a morar no Egito, mas por pouco tempo. Por questões políticas decorrentes da guerra, Salim passou a ser perseguido, foi demitido e não pôde mais trabalhar no país. Depois de um tempo, o casal ficou sem dinheiro e sem perspectivas, e começou a pensar em sair do Oriente Médio. Assim surgiu a ideia de vir para o Brasil, destino que outros refugiados sírios já haviam escolhido.

Salim, Oula e o pequeno Adam chegaram ao aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, com 300 dólares na bagagem. Não tinham onde ficar e nem a quem recorrer, muito menos sabiam falar português. “Quando entregamos os passaportes na imigração, eles disseram: ‘Podem entrar’. Então perguntei para o Salim: ‘E agora, o que vamos fazer?”, diz Oula.

Foram para a Praça da República, no Centro da capital paulista, e se hospedaram num hotel barato. Para minimamente se comunicarem com as pessoas, usavam a ferramenta de tradução do Google, um apoio fundamental naquele momento. A busca por trabalho era diária. Salim vendia comida na rua, fazia faxina e vários outros bicos.

Nesse período, uma pessoa fez a diferença na vida do casal. Salim conheceu o fotógrafo Olegário Schmitt, que se dispôs a ajudá-los. O brasileiro falava inglês, o que permitiu a comunicação entre eles. “Aí, sim, começou nossa vida aqui. Conheci ele na lavanderia. Ele andou comigo por todos os lugares, mandou email para empresas”, diz Salim. “Nosso amigo muito querido. Ele ajudou muito a gente”, afirma o palestino, que hoje, assim como Oula, fala e entende português com bastante desenvoltura.

Recomeço no Brasil

O primeiro trabalho regular surgiu com a ajuda de Olegário, que entrou em contato com um centro de cultura árabe em São Paulo, indicando Salim para serviços de vídeo. Deu certo. “Comecei a trabalhar. Ganhava mil reais por mês e trabalhava 12 horas por dia”, afirma o palestino. Oula também conseguiu alguns trabalhos nesse mesmo centro.

Foto: André Stefano

Tempos depois ela começou a atuar como cantora, um talento desenvolvido desde pequena com o pai, que era um músico amador. “Fui cantar no JazzNosFundos”, diz Oula, referindo a uma casa que se tornou reduto do jazz no bairro paulistano de Pinheiros. “Lá, conheci o maestro da orquestra de refugiados em que canto atualmente.”

A história de Salim e Oula teve um impulso decisivo quando o casal conheceu Rodolfo García Vázquez, diretor, dramaturgo e um dos fundadores dos Satyros, companhia paulistana de teatro premiada nacional e internacionalmente. Os dois palestinos participaram de um evento sobre refugiados na unidade da SP Escola de Teatro que fica no Brás, um dos bairros da região central da cidade. Rodolfo ficou sabendo da história de Oula e Salim e ofereceu trabalho de imediato. “Ele falou assim: ‘O Salim vai fazer vídeos para nós e a Oula vai trabalhar como atriz dos Satyros’”, conta Oula.

 

Ela se espantou com a possibilidade de ser atriz, algo que nunca tinha feito antes, muito menos em português. O primeiro espetáculo foi “O incrível mundo dos baldios”, escrito por Rodolfo e Ivam Cabral, ator e dramaturgo e também fundador dos Satyros. A peça, que ficou em cartaz em 2018 na capital paulista, fala de grupos sociais que têm dificuldade de inserção no capitalismo do século XXI.

Palco da vida

Durante a preparação do espetáculo, Rodolfo e Ivam estimulavam os atores a falar sobre suas histórias de vida. “Eu achei que iria participar ficando lá no fundo do palco. Quando recebi o texto, levei um susto!”, conta Oula. O susto é porque ela não apenas ganhou um papel de destaque como sua fala era totalmente baseada nas histórias que viveu e contou durante o processo de criação.

Diante de uma situação tão desafiadora – interpretar um longo texto numa língua que ainda não dominava perfeitamente e falar de sua experiência como refugiada, relembrando momentos dolorosos -, Oula chegou a chorar durante os ensaios. Em um desses momentos, disse para Rodolfo, que dirigia a peça, que não ia conseguir. “Esse texto não é meu, é seu. Você vai conseguir, sim”, respondeu o diretor. A nova atriz não só deu conta do recado como foi responsável por uma das passagens mais emocionantes do espetáculo.

Os laços com a trupe dos Satyros se estreitaram cada vez mais, e assim o Bab Bar entra na vida de Salim e Oula. Ivam e Rodolfo eram donos do Bambolina, um dos bares na Praça Roosevelt. Em junho de 2018, os artistas resolveram dar o bar para o casal, que aos poucos começou a transformar o espaço. Hoje frequentado por hipsters, artistas e a comunidade LGBT, o Bab também abriga eventos culturais, como pequenos shows, almoços e encontros literários e gastronômicos de imigrantes de diferentes regiões, como Angola, Moçambique e a própria Palestina.

“Isso mudou nossa vida totalmente”, diz Oula. “Agora temos garantia para o futuro, temos renda. Rodolfo e Ivam viram que merecemos porque trabalhamos muito e quando fazemos alguma coisa, fazemos com o coração”, afirma. “E nós precisamos dar uma vida melhor para nossos filhos”. Sim, filhos, no plural, porque agora a família palestina que abraçou o Brasil tem um segundo membro, Carlos, de dois anos, um brasileirinho espoleta e carismático.

Hoje a vida é muito melhor para o casal, mas os cortes provocados pela guerra são dolorosos demais. A família de Oula (mãe e irmãos) vive no Brasil e se integrou à nova terra, mas o pai não pôde vir. Há alguns anos, foi uma das vítimas da guerra, atingido dentro de casa por uma bala perdida. Ele chegou a se recuperar, embora tenha ficado com a bala alojada no corpo, mas depois teve câncer na próstata. Os filhos já estavam fora do país, fugindo dos ataques. “Por causa da guerra, ele não conseguia ir ao hospital se tratar. Era muito perigoso. Nenhum dos filhos estava junto quando ele morreu. Só a minha mãe. Nunca vou esquecer isso”, diz Oula, enxugando as lágrimas.

Agora, tudo o que ela quer é viver dignamente com a família na terra que a recebeu. Para Oula e Salim, o Brasil representa uma vida nova e de esperança. Porque, ainda que o país viva tempos sombrios e de desalento, não se compara ao terror da guerra. “Descobrimos que tinha uma porta aberta para nós aqui e fomos bem recebidos”. Tem uma coisa, no entanto, que ela gostaria que fosse diferente. “Aqui, a todo o momento as pessoas perguntam de onde eu vim e somos chamados de refugiados. A palavra refugiada não é agradável. Pode dizer apenas que a Oula é uma palestina que quer ter uma vida normal e criar seus filhos no Brasil”.

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