Blog do Sócio

A versão atual da Revolução Caraíba é uma luta pela libertação do trabalho alienante

A filosofia antropofágica de Oswald de Andrade desenvolve uma perspectiva descolonizadora por melhores possibilidades de vida

Abaporu, de Tarsila do Amaral. Foto: Reprodução
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por Ivan Maia de Mello

Neste mês de Maio, o antropófago Abaporu completa 95 anos de sua estreia na Revista de Antropofagia. Tarsila do Amaral deu sua pintura de presente de aniversário a Oswald de Andrade, em 11 de Janeiro de 1928, e este batizou a figura com seu nome indígena, e em seguida ocorreu sua primeira aparição pública no veículo, em maio de 1928, como desenho de Tarsila, o esboço da pintura mencionada.

De lá pra cá, o avanço da Revolução Caraíba ocorreu, mas não como esperava seu profeta, autor do Manifesto Antropófago, no qual as ideias revolucionárias foram apresentadas em suas primeiras versões: “Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem.”

Essa unificação, que chamaremos interseccional, das insurgências reumanizadoras, que podemos considerar como versão atual da Revolução Caraíba proposta por Oswald no Manifesto, é uma revolução molecular, micropolítica, no sentido pensado por Felix Guattari, em que as lutas políticas se dão em várias relações de poder, além da classe: antirracista, feminista, pela diversidade sexual, contra a degradação ambiental, contra o genocídio indígena, pela reforma agrária, por moradia, contra a fome, etc.

Apesar do retrocesso dos últimos seis anos, desde o golpe parlamentar-midiático-jurídico que depôs a presidenta Dilma Rousseff, estes últimos anos foram um período de intensificação das lutas frente ao crescimento de uma força social fascista que, apoiada por setores do poder judiciário e midiático, conseguiu eleger seu presidente em 2022 e desgovernou o país por quatro anos.

Neste 1º de Maio, muitos trabalhadores ainda comemoram o “Dia do Trabalho” sem se darem conta (frequentemente induzidos por instâncias midiáticas) de que o Dia do Trabalhador e da Trabalhadora comemora a luta de operários que fizeram greve e foram reprimidos violentamente pela polícia em Chicago em 1886, sobretudo desde que Getúlio Vargas mudou o nome da data em 1943.

Essa mudança de nome realizada por Getúlio Vargas, que transformou o Dia do(a) Trabalhador(a) em “Dia do Trabalho”, é o acontecimento ideológico de expropriação pela classe dominante, através do Estado, com protagonismo do governante, de um marco simbólico de luta política (luta de classes) associado a uma greve (que não foi passiva, como as que passaram a ocorrer depois), substituindo o significante e operando uma transmutação de sentido reacionária, quanto ao papel dos sindicatos, que passaram a ser tratados como “pelegos”, ou seja, instância de amortecimento (suavização) da expropriação capitalista.

O que Oswald de Andrade compreendeu e explicou em sua tese A crise da filosofia messiânica, de 1950, é que a luta dos trabalhadores, cuja exploração de sua força de trabalho passou a ocorrer transformando-a em mercadoria a serviço do lucro e da mais valia dos burgueses proprietários dos meios de produção, esta luta tem como finalidade mais autêntica e radical a reapropriação do ócio, compreendido como atividade livre e não mera inatividade ociosa.

Portanto, a Revolução Caraíba não é uma mera luta pelo trabalho, por condições melhores de trabalho, geralmente reduzida a uma luta salarial, mas é uma luta pela libertação do trabalho alienante, no qual os trabalhadores se sujeitam à dominação de classe, para poderem desfrutar do ócio, negado aos trabalhadores pelos donos do negócio, como interpreta Oswald explicando, em sua tese filosófica, o surgimento do capitalismo: “o negócio que é a negação do ócio”.

A filosofia antropofágica de Oswald de Andrade, influenciada particularmente por Nietzsche, Marx e Freud, foi elaborada sobretudo nessa tese mencionada e em outros dois textos escritos nos últimos dez anos de vida (1944-1954), a saber, A marcha das utopias e O antropófago. Esta filosofia pensa a “devoração” como uma atitude de apropriação, a partir de uma condição própria derivada da condição originária dos povos indígenas e africanos, que formaram o Brasil resistindo à colonização portuguesa. A filosofia antropofágica propõe que nos apropriemos seletivamente de tudo que na herança dessa colonização pode servir para aumentar a potência de criação da vida, particularmente os saberes, práticas e tecnologias apropriadas a isso.

Assim, a filosofia antropofágica de Oswald desenvolve uma perspectiva descolonizadora por meio de uma crítica irreverente da herança colonial, e realiza uma transvaloração (uma transmutação de valores), visando “a transformação do tabu em totem”, impulsionada pelo “instinto caraíba”, ou “instinto antropofágico”, um impulso lúdico de apropriação seletiva, que busca a reapropriação do ócio como condição para uma carnavalização da vida.

Isso tem um caráter utópico, tal como descrito no texto A marcha das utopias, em que Oswald aponta uma influência sobre o imaginário político europeu, decorrente do impacto da visão que os invasores tiveram ao se depararem com o modo de vida indígena, que teve um dos primeiros registros no ensaio Dos canibais escrito pelo filósofo Michel de Montaigne, além de impulsionar o surgimento da literatura de teor utópico (Thomas Morus, Tommaso Campanella) e da literatura de viagens.

No entanto, ainda que utópica, a perspectiva antropofágica de Oswald permite superar a absorção do mundo da vida pelo mundo do trabalho, para nos levar a buscar não apenas melhores condições de trabalho, mas sobretudo melhores possibilidades de vida, coletivamente, como ele sugere com sua valorização de uma forma de vida matriarcal, em contato mais próximo com a natureza e suas energias revigorantes.

Nesse tempo ameaçado por uma guerra com risco de uso de arsenais nucleares e emergência de uma multipolaridade na geopolítica mundial, em que o neoliberalismo tenta manter a expropriação privatista de recursos das sociedades nacionais, a luta antropofágica passa pela desprivatização de empresas e combate ao parasitismo do capital financeiro que nos impõe a mais alta taxa de juros do planeta.

O Brasil Pindorama resiste!

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