3ª Turma

Da tecnicidade dos togados aos poderes dos palanques

Moro pode, potencialmente, converter-se em Moro político Presidente, o “herói”, que tentou salvar o bolsonarismo, mas foi “lançado aos cães”

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O direito, a partir da modernidade, passou a ser construído como uma “ciência pura”, para falar como Kelsen [1], uma técnica purificada da política. Frente a essa visão moderna e “tecnicista”, observa-se a crescente transferência de agenciamentos da política para o direito, tornando as organizações jurídicas algo como “caçadores de bruxas” ou entidades “supra-morais”, que devem “varrer” as sujeiras da política brasileira. [2]

A colocação das institucionalidades do direito nesse espaço privilegiado de neutralidade, aliada à espetacularização dos atos e processos judiciais [3], provocou nítidos efeitos nas últimas eleições, quando tradicionais atores do direito, como os juízes federais Sérgio Moro e Wilson Witzel, passaram a ocupar cargos políticos, com discursos de “caça às bruxas”. Os perseguidos da vez são os empoeirados agentes da “velha política”, pertencentes a um passado de barbas brancas, já tão maculado pelos “acordes endêmicos da corrupção”.

O passado trevoso, enterrado, perseguido, apagado, silenciado, agora é vendido sob a promessa de um futuro “limpo” – vide o fino lembrete no nome da operação italiana “Mãos Limpas”, que inspira a sua versão tupiniquim, a “Lava Jato” – dando lugar às novas luzes, ao futuro “iluminado” dos agentes do judiciário, que passam a ocupar novas funções e posições, assumindo posturas de paladinos da justiça ou enviados messiânicos de um “novo” mundo.

Mas quem escreve esse arquivo que classifica o passado político como “repleto de trevas” ou “sombrio”, ou melhor, por meio de quais regularidades discursivas se estabelece esse novo agenciamento, em que os atores das institucionalidades do direito passam a ocupar as tradicionais funções da política, fora do território de disputas tradicionais, mas encarnando o projeto de politização da justiça?

Do território das leis ao “povo”, no espetáculo da judicialização

Nessa nova agenda de moralidade administrativa, que detém cobertura extensa e de alta repercussão por parte da mídia brasileira, os juízes devem atuar nos conformes do “anseio popular”, para falar como o ministro Luiz Fux, repetindo a figura totalitária do “povo” como entidade amorfa e plana, aquele mesmo “povo” em nome do qual Jair Bolsonaro defende a “família brasileira”, bloco monolítico que assim é tratado para dissipar as diferenças e inaugurar esse espaço de neutralidade em que o direito mesmo se escora, por meio do qual se violentam todos aqueles que não se encaixam nos padrões e se criam os “inimigos vermelhos” e outras figuras indesejadas.

O discurso do direito como a ciência técnica e isenta dos modernos – pura, para falar, mais uma vez, como Kelsen – tem transferido os atores jurídicos do regime das “tecnicidades” do direito – lembrando Moro, que disse que jamais assumiria um cargo político, mas que o ministério da justiça era cargo “técnico”, por isso, passível de aceite de nomeação  [4]– para as paixões e os poderes dos palanques. Mas esses novos palanques se fazem não mais nos territórios da disputa pela fala, pela persuasão, pelo convencimento ou pelos afetos, mas pelas frias camadas do direito como a “técnica isenta” nos palanques dos togados.

Tal “judiciarismo” pode ser compreendido no contexto da construção teórica e hermenêutica daquilo que Latour chamou de estado de crença da “modernidade”, que não se trata de um estado mental, mas relacional. Se o moderno é aquele que crê que só ele que sabe e os outros os que crêem [5], apontamos que os juízes modernos são aqueles que crêem que os políticos é que são os atrasados e parciais, mas eles, os juízes, não.

Nessa nova cultura judiciarista, crescente com os discursos da modernidade, a corte constitucional brasileira, para falar como o ministro Luís Roberto Barroso, seria a “vanguarda iluminista” que irá “empurrar a história” rumo à promessa de futuro, carimbando o passado político como ruim.

Cabe mencionar que os discursos extravasam esse território, pois, se há algo em comum no movimento judiciarista, é que ele emblematicamente encarna, junto com toda a agenda moral, a política criminal a la lei de Talião, repleta de punitivismo, que visa a eliminar os corpos indesejados dos negros e dos pobres, como ficou claro em operação policial com o ex-juiz federal, agora Governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que tem total desprezo pelos direitos humanos e assume, objetivamente, a postura do ódio.

Em 04 de maio, junto com alguns snippers em um helicóptero, o ex-juiz federal sobrevoou comunidade humilde de Angra dos Reis e passou a atirar em vários civis e “suspeitos”. Em ato de nítido cinismo, como se não bastasse o absurdo da operação, ainda a filmou e a exibiu, tornando-a um “espetáculo”, como se fosse troféu. Banhou-se no sangue não mais abstrato ou metafórico, mas físico e real dos “bandidos”, dos “inimigos do Estado”, ou, se assim preferirmos dizer, dos “pobres”, em operação que vai contra todas as conquistas civilizatórias milenares.

Wilson Witzel, participando de operação policial em Angra dos Rei

Nessas novas configurações geopolíticas dos atores do “direito”, cometem-se genocídios reais, como no caso de Witzel – que, aliás, apesar do desprezo absoluto do bolsonarismo pela “ciência”, ainda se escora em mentira “técnica” científica, o “desejado” doutorado em Harvard [6] – mas, também, genocídios potenciais, como no pacote “anticrime” criminoso de Moro, que fortalece o poder das milícias, provoca o agravamento de penas e o aumento da população carcerária, isso sem falar na aberração da ampliação da excludente de ilicitude e na possibilidade de isenção de pena a policiais que agem em excesso decorrente de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Nesse contexto de queda da Constituição [7], não causa nenhum estranhamento que, recentemente, o relator do pacote “anticrime” no Congresso, deputado Capitão Augusto, afirmou que considera a Constituição Federal de 1988 um “grande erro na legislação brasileira”. [8]

Moro e a legitimação populista

O convite de Bolsonaro a Sérgio Moro para assumir a pasta de Justiça é repleta de controvérsias. O convite parte de legitimação populista em busca de apoio para transformar a velha política bolsonarista (e o velho político Bolsonaro) em uma espécie de “nova política” e repete a retórica do “bem” contra o “mal”. Por outro lado, para Sérgio Moro, sua obsessão política era algo como “ganhar na loteria” a cadeira do Supremo Tribunal Federal, controvérsia recentemente escancarada entre ele e Jair Bolsonaro, sobre a existência de acordo ou não que vinculava o aceite do ministério da justiça com a futura cadeira no STF.

Sérgio Moro toma posse como Ministro da Justiça

Contudo, mesmo perante tal legitimação, a Presidência parece respirar por aparelhos. A última manifestação – pouco expressiva e prematura, ressalte-se, em apenas 5 (cinco) meses de governo – que foi convocada para apoio ao natimorto governo, em 26-05-2019, confirma que Bolsonaro em muito se escora no judiciarismo, já que a pauta geral – além do descrédito amorfo às organizações como o STF e o Congresso Nacional – era o apoio ao Moro, ressaltando os manifestantes a defesa da Lava Jato, do pacote “anticrime” e, ainda, da reforma da previdência de Paulo Guedes. [9]

Outro risco que se esboça é que, fracassando a aliança entre a Lava Jato e Bolsonaro, que eles partam para queda de braços que fragilize a democracia, misturando ainda mais os territórios do direito e da política.

Se Moro, o político “técnico” juiz ou o político “técnico” Ministro da Justiça não angariar suficiente apoio para o Moro político “técnico” Ministro do STF, ele pode, potencialmente, converter-se em Moro político Presidente, o “herói”, que tentou salvar o bolsonarismo, mas foi “lançado aos cães”.

Tudo isso escorado no singelo e técnico negrume da toga daquele primeiro Moro, o juiz (primeiro, messiânico, e depois, “Jair messiânico”). Nenhuns dos messias são bons, afinal, o combate à corrupção não pode ser feito por heróis ou por soluções simplistas como o punitivismo penal, mas sim por trabalho sério e profundo que compreenda os mútuos agenciamentos e atravessamentos entre política e direito, economia e administração pública, história e poder.

Referências:

[1] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo/SP: Martins Fontes, 2006.

[2] Para falar como Fontainha e Lima, os atores do poder judiciário se tornaram algo como “faxineiros morais”. Sobre o tema, ver: FONTAINHA, Fernando; LIMA, Amanda Evelyn Cavalcanti de. Judiciário e crise política no Brasil hoje: do Mensalão à Lava Jato. In: KERCHE, Fábio; FERES Júnior, João; et al. (Coord.). Operação Lava Jato e a democracia brasileira. São Paulo: Contracorrente, 2018

[3] Para falar com Debord: DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

[4] Segundo Sérgio Moro, o aceite do cargo ministerial ocorreu por se tratar de cargo “essencialmente técnico”. Sobre o tema, ver: GHIRELLO, Mariana. Sérgio Moro afirma que cargo de ministro da Justiça é ‘técnico’. Portal R7, 06 nov. 2018. Disponível em: <https://noticias.r7.com/brasil/sergio-moro-afirma-que-cargo-de-ministro-da-justica-e-tecnico-06112018>. Acesso: 26 mai. 2019.

[5] Cf. LATOUR, Bruno. Petite réflexion sur le culte moderne des dieux faitiches. Paris: Synthélabo, 1996, p. 15.

[6] As mentiras pululam nos últimos tempos, sem nenhuma vergonha. O cinismo é tamanho que tornou-se algo comum ou banal expedi-las – como enxames. Mais sobre o tema em: CERIONI, Clara. Os ministros do governo Bolsonaro que mentiram no currículo. Exame, 23 mai. 2019. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/os-ministros-do-governo-bolsonaro-que-mentiram-no-curriculo/>. Acesso em: 26 mai. 2019.

[7] Sobre o tema, ver: LEMES DE SOUZA, Ana Paula. A queda Constituição. CartaCapital, 10 jan. 2019. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/justica/a-queda-da-constituicao/>. Acesso em: 09 mai. 2019.

[8] Conforme veiculado no portal Brasil 247, em 24-05-2019. Disponível em: <https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/394451/Relator-de-pacote-anticrime-de-Moro-diz-que-Constitui%C3%A7%C3%A3o-Federal-%C3%A9-grande-erro.htm>. Acesso: 26 mai. 2019.

[9] Cf. SIQUEIRA, André. Atenuados, atos pró-Bolsonaro devem mirar Centrão e defender Moro. Veja, 25 mai. 2019. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/atenuados-atos-pro-bolsonaro-devem-mirar-centrao-e-defender-moro/>. Acesso em: 26 mai. 2019.

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