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Virgínia Bicudo: a primeira de muitas

A psicanalista Virgínia Bicudo foi pioneira e um orgulho para a história das mulheres negras no Brasil

Virgínia Bicudo
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Lançar luz sobre a vida e obra de pensadoras negras nos ajuda a entender inúmeros contextos históricos e sociais. Olhar para trás nos evidencia tanto mudanças fruto de movimentações e lutas, quanto as permanências enraizadas na nossa sociedade (e nas universidades).

A escolha de Virgínia Leone Bicudo (1910-2003), exemplifica isso. Nascida no bairro da Luz, São Paulo, foi filha de Giovanne Leone, imigrante italiana, e Theófilo Júlio Bicudo, nascido de ventre livre e criado como empregado de casa da família tradicional Bicudo. O nome de nossa protagonista é a sintetização de um momento específico: resquícios da escravidão, imigração europeia e modernização de São Paulo. A própria adoção do sobrenome Bicudo foi uma estratégia de seu pai que demonstra a tentativa de mudança e “evolução” familiar necessária para se viver em um país profundamente adoecido por séculos de escravidão.

A educação para sua família, assim como para muitas famílias e pessoas negras, era tida como essencial para uma possível ascensão social. Para Virgínia, em sua infância, a educação também era válvula de escape das violências e agressões constantes de seus “colegas”. Dessa forma, (in)felizmente ela era uma estudante aplicada, se dedicando mais que muitos outros, apesar de não ser reconhecida.

Sua dedicação gerou frutos e em 1932 se formou em Educação Sanitária no antigo Instituto de Higiene de São Paulo. Enquanto educadora sanitarista, teve contato com diversas questões emergentes como, por exemplo, mulheres circulando, ocupando e trabalhando na rua – sendo que nesse período existia a infeliz anedota: Mulher direita não anda na Rua Direita (da região central da capital). Para Virgínia Bicudo essa e suas diversas profissões eram formas também de entender o racismo e auxílio à população negra. Ela foi uma mulher de seu tempo e lutou com as ferramentas existentes na sua época.

Em 1938, ela se torna a única mulher (negra) a obter o diploma em Ciências Políticas e Sociais pela Escola Livre de Sociologia e Política. Na graduação, conhece Adelheid Koch, psicanalista judia que vem ao Brasil para fugir do nazismo. Virgínia Bicudo se torna a primeira analisanda da América Latina.

O que chama atenção desse movimento é como a discussão sobre saúde mental se tornou popular muito recentemente. Há pouco tempo, era possível ouvir que “depressão era doença de rico” ou observar a dificuldade da população negra e pobre em acessar profissionais desta área. E, de outra forma, repito: a primeira pessoa a ser analisada na América Latina foi uma mulher negra ou, para os termos da época, uma mulata.

Em uma tentativa de entender melhor as atitudes raciais das pessoas, ela migra pra Psicanálise. Como é possível observar: Virgínia foi a primeira psicanalista não-médica do Brasil, o que abriu caminho para que Medicina não fosse a exigência na formação. Nesse período, ela enfrentou inúmeras acusações de charlatanismo, principalmente de figuras poderosas, como é o caso de Flamínio Fávero (uma busca detalhada sobre ele ajuda a entender os laços entre a Medicina e o racismo).

Mesmo sendo experiencialmente informada sobre a questão racial em suas escolhas profissionais, apenas dois de seus trabalhos têm esse foco: Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo, sua dissertação de mestrado, e Atitudes dos Alunos dos Grupos Escolares em Relação com a Cor de seus Colegas, resultado de sua participação no Projeto Unesco-Anhembi (coordenado por Florestan Fernandes e Roger Bastide).

Seu trabalho para o Projeto Unesco-Anhembi foi utilizado por diversos autores, principalmente Florestan Fernandes, neste mesmo projeto, mas nunca referenciado ou citado. Na edição final, seu nome nem aparece. Na psicologia seu nome foi mais conhecido, mas sua cor não.

Sua biografia veio à tona após trabalho minucioso de Janaína Damasceno Gomes, docente na UERJ, que resultou na tese emocionante Os segredos de Virgínia: Estudos Raciais em São Paulo (1945-1955). Foi nesse trabalho que baseei esse artigo. Agradeço à profª Janaína por esse trabalho (e por tantos outros).

Hoje alguns termos sobre questões raciais caíram em desuso, como atitude, e outros inúmeros surgem e demarcam a própria democratização do ensino superior. É cada vez mais comum – e isso não quer dizer fácil – mulheres negras adentrarem nas universidades. O trabalho de recuperação das pensadoras negras negligenciadas ou apagadas na história (feito normalmente por outras pesquisadoras negras) é importante pois vemos que sempre estivemos nesse espaço e protagonizamos mudanças importantes na academia e na sociedade.

Ainda assim, muitas de nós, quando e se temos nossos trabalhos lidos, não somos citadas ou referenciadas. Parece que a mensagem geral é: mulheres negras são assuntos de mulheres negras, quando na verdade olhar essas trajetórias podem nos dar ferramentas valiosas de transformações que seriam usufruídas por todo(a)s. Graças às movimentações de mulheres negras, muitas coisas mudaram, mas olhando o que se manteve, duas questões surgem: Que sociedade (e universidade) é almejada a partir desses apagamentos? Será que as mulheres negras são as únicas responsáveis pelas movimentações estruturais da sociedade?

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