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O último debate e a reta final da campanha presidencial nos EUA

Impacto da transmissão será marginal porque 50 milhões de eleitores norte-americanos já votaram

Debate entre Trump e Biden
Último debate entre Trump e Biden. Foto: JIM WATSON, BRENDAN SMIALOWSKI, MORRY GASH/AFP/POOL Último debate entre Trump e Biden. Foto: JIM WATSON, BRENDAN SMIALOWSKI, MORRY GASH/AFP/POOL
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* Rafael R. Ioris

Milhões de norte-americanos reservaram 90 minutos na noite dessa quinta-feira 22 para assistir ao último debate da campanha presidencial de 2020. Inicialmente, três estavam programados para ocorrer durante a campanha, mas o segundo foi cancelado após Trump, que se recuperava de de Covid-19, se recusar a participar de um evento virtual.

 

O debate de ontem marcou um claro contraste com o primeiro, realizado no dia 29 de setembro. Naquela ocasião, o atual presidente, o republicano Donald Trump, concorrente à reeleição, chocou o país com um retórica agressiva que impediu a exposição de projetos e troca com o seu oponente do partido Democrata, o ex vice-presidente Joe Biden.

Agora, tratando de temas importantíssimos para a sociedade norte-americana – a Covid-19, a influência estrangeira nas eleições do país, a economia, o acesso à saúde, a problemática migratória, a temática racial e a mudança climática -, o debate permitiu realmente uma exposição das visões e dos estilos de cada candidato.

E embora seja pouco provável que o evento venha a ter papel decisivo na disputa, é possível que alguns votos tenham sido obtidos ou perdidos por cada lado. Não seria errado afirmar que Trump poderá se beneficiar mais do debate de ontem. Ele fez um enorme esforço para ser menos agressivo, o que parece ter conseguido, tendo se comportado de maneira diametralmente oposta ao que fez no primeiro debate.

De fato, com microfones cortados enquanto seu oponente falava, Trump conseguiu manter a elegância com a moderadora – a jornalista da rede de televisão NBC, Kristen Welker – e mesmo em relação a Biden, embora tenha feito ataques duros a ele e a sua família.

O republicano acusou o democrata, repetidas vezes, de ser um político tradicional, incompetente, envolto em diversos escândalos de corrupção – acusação risível, vinda de Trump, mas que certamente tem apelo junto ao seu eleitorado, um misto de apoiadores de perfil conservador associados a grupos pautados pela lógica anti-política em voga em várias partes do mundo.  

Trump teve na noite de ontem a sua maior oportunidade de virar o jogo, já que seus números eleitorais, nas mais variadas sondagens ao longo dos últimos 3 meses, consistentemente tem apresentado uma defasagem em relação a Biden de cerca de 10 por centro – hoje, Biden é o favorito a ganhar o pleito. É bastante provável que o debate tenha favorecido o atual mandatário da maior potência militar do planeta. Trump não só se comportou de maneira mais digna, como conseguiu em diversos momentos pautar a narrativa da interação. 

O atual presidente repetiu de maneira contundente, mas genérica, que a família Biden teria se beneficiado de maneira espúria da longa trajetória, de quase 50 anos, na política do seu patriarca. Trump também conseguiu fazer com que Biden cometesse deslizes importantes.

Fez com que o ex vice-presidente afirmasse que não tentaria impor um modelo de de saúde pública universal no país, algo que certamente poderá frustar as bases mais progressistas do partido Democrata. Também forçou Biden a afirmar que poderia impor novos impostos a empresas petroleiras, de modo a forçar com que estas migrem para o setor de energia renovável. Tal afirmação certamente influenciará de forma negativa eleitores em estados-chave onde petróleo e gás natural são atividades importantes, como Pensilvânia, peça fundamental para decidir o resultado da eleição.

Biden, por sua vez, também teve uma grande chance de consolidar sua liderança, algo que talvez tenha conseguido, já que não cometeu nenhuma gafe flagrante além dos erros que Trump o forçou a cometer. O ex vice-presidente certamente teve na economia e na questão da Covid-19 seus maiores trunfos durante o debate.

O atual presidente foi forçado a reafirmar que as coisas não estão tão mal, que sua administração fez um trabalho excelente, que não se pode sacrificar a economia e que a culpa pela pandemia estaria com a China. Tais afirmações indicaram uma clara falta de sensibilidade em relação a tantas famílias afetadas pela crise sanitária em curso. Lembremos que os EUA têm hoje mais de 220 mil mortes diretamente ligadas à Covid-19 e que os números de infecções estão crescendo assustadoramente no país. Biden soube aproveitar bem essa questão ao afirmar que Trump não tem um plano, e que ele fracassou na defesa da vida dos norte-americanos. 

Em temas em que Biden poderia te se saído igualmente bem, como a questão da interferência estrangeira nas eleições norte-americanas e o tema do desemprego, Trump conseguiu desviar o foco, puxando o oponente para o centro das polêmicas. Em especial, isso foi feito por meio de acusações de que o filho de Biden é que teria conspirado com empresas estrangeiras a fim de obter ganhos lícitos, e que o plano dos Democratas para a recuperação da economia, que inclui um aumento significativo no salário mínimo, viria a destruir a economia.

Da mesma forma, na pauta migratória, onde o governo atual chegou a colocar crianças imigrantes em jaulas, Trump conseguiu se defender bem, tendo mesmo conseguido inverter a discussão: apresentou Biden como membro de um governo em que ainda mais pessoas foram deportadas. Também na questão racial e de sustentabilidade, temas que deveriam ser favoráveis ao candidato democrata, Trump conseguiu inverter o foco, afirmando que o atual governo criou empregos para minorias raciais e que os democratas querem sacrificar a economia em prol do meio ambiente. 

Nesse sentido, mesmo sendo candidato à reeleição, e em vez de defender seu mandado atual e apresentar um programa para um segundo mandato, o que Trump fez foi sair para o ataque contra quem caracterizou como um político tradicional, corrupto e hipócrita. Se a lógica combativa, embora bem-comportada, de Trump vai funcionar, é difícil prever.

Lembremos que cerca de 50 milhões de eleitores norte-americanos já votaram e que, portanto, o impacto do debate será marginal. Lembremos também, porém, que no sistema anacrônico dos EUA, o voto popular não decide a eleição presidencial. E que, assim, se Trump tiver convencido um número suficiente de eleitores moderados em estados-chave de que Biden é um candidato radical, e que eles devem manter as coisas como estão – o que possível que tenha ocorrido –, o debate presidencial de ontem terá sido não um evento mais digno do nome, mas talvez, mesmo, o elemento decisivo de uma das eleições mais importantes da história recente dos EUA.

* Rafael R. Ioris, Professor da Universidade de Denver (nos EUA) e pesquisador do Instituto de Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU)

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