Artigo
Fim do vale-tudo
A criminalização do cyberbullying é fundamental para a construção de um ambiente digital saudável para os usuários


Toda vez que tratamos do tema relacionado à responsabilidade nas redes, é comum surgir a dúvida sobre qual é o limite da liberdade de expressão? A lei determina que todo exercício de direito que exceder os limites da boa-fé e dos bons costumes está sujeito a indenizar pelo dano causado. Ou seja, em plena sociedade da informação, somos regidos por valores éticos que podem ser monetizados. Se o resultado alcançado tiver um valor superior ao da punição aplicada, pode valer a pena infringir a lei. E esta lógica distorcida foi completamente amplificada com o fenômeno das mídias sociais, principalmente com o uso de algoritmos e hashtags.
Dependendo do caso, a internet valoriza muito quem causa polêmica, humilha, ofende, discrimina, trazendo resultados que são convertidos em fama e dinheiro, em detrimento daqueles que respeitam as leis, são moderados e cautelosos. Isso porque a audiência, por algum motivo, não apenas procura, no sentido de ir atrás da informação, mas também é procurada, quando há um impulsionamento de um conteúdo pago ou escolhido pelo próprio algoritmo, considerando o perfil e os interesses da rede.
Os dados refletem os comportamentos e, em essência, o humano vai do espectro curioso ao cruel, passando pela ingenuidade e pela maldade. Por isso é tão importante regulamentar o uso das mídias e deixar bem clara a responsabilidade daqueles que possuem poderes de influenciar outros, como ocorre com administradores de grupos ou comunidades.
Recentemente, foi promulgada a Lei nº 14.811/2024, que traz a criminalização das condutas de bullying e cyberbullying, e atualiza o Código Penal Brasileiro para tratar dos crimes relacionados a intimidação sistemática. Em pleno momento de aceleração do uso das aplicações de inteligência artificial e amplo acesso a recursos digitais, de jovens a idosos, ética e transparência são princípios indispensáveis para que seja possível construir um ambiente digital saudável e sustentável aos usuários. Mais que isso, é necessário que haja responsabilização daqueles que produzem e entregam informações.
A nova lei reforça os protocolos de segurança para proteger crianças e adolescentes
A tecnologia, por si só, não é boa nem ruim, depende de como é utilizada. Logo, se uma solução de inteligência artificial tem como resultado a criação de conteúdos falsos, ofensivos e depreciativos, que podem ter consequências graves na saúde mental, especialmente de crianças e adolescentes, deveria haver uma regulamentação a prever requisitos a ser observados de fábrica, de ethics by design. Afinal, não poderia uma IA mentir ou descumprir uma lei, fingindo ser uma pessoa, por exemplo.
Além de complementar o que o Brasil vinha fazendo desde 2015 com a Lei nº 13.185, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (bullying), a nova regulamentação é uma resposta evidente em aumentar os protocolos de segurança voltados para a proteção de crianças e adolescentes. O novo texto determina que diversas posturas contra menores de 18 anos sejam tratadas como crimes hediondos e inafiançáveis.
Além de ser um avanço importante, que demonstra como estamos tratando o tema com seriedade no País, o texto atualiza a legislação criminal brasileira e traz um elemento urgente e prioritário: a responsabilização nas redes. A grande mudança é ter a especificação dos crimes de bullying e cyberbullying, que antes eram classificados com outras determinações do Código Penal, como difamação, injúria, calúnia ou ameaça. Ou seja, constrói uma política nacional de prevenção ao abuso e exploração da criança e do adolescente.
Também é válido destacar outro ponto de grande relevância na Lei 14.811, a pena em dobro se o autor da violência é líder, coordenador ou administrador de grupo, de comunidade ou de rede virtual, ou por estes é responsável. Muitos jovens são assediados ou violentados em grupos – sejam de jogos virtuais ou mesmo de mídias sociais – e que, por terem medo de ser cancelados, passam por uma série de bullyings sem punição. Agora, a nova legislação traz mecanismos para que o dono tenha responsabilidade sobre o que é divulgado. O Judiciário já vinha entendendo a responsabilidade civil sob a ótica de “quem cala, consente” digitalmente.
Após a aprovação, os desafios continuam e são ainda maiores, já que é preciso fazer com que a lei saia do papel, por meio de campanhas educativas, de ações para educar sobre as normas, além de todo um amplo trabalho para efetivar a fiscalização e a punição. Isso reflete diretamente na realidade educacional, já que a nova regulamentação exige das instituições uma mudança específica, que deve afetar a rotina e a gestão não apenas das instituições de ensino, mas também de empresas públicas e privadas, uma vez que a nova lei trouxe exigências de ficha limpa para quem desenvolve atividades com crianças e adolescentes.
São medidas que devem provocar mudanças culturais, ao estabelecer o dever de cautela, prevenção e de cuidado com crianças e adolescentes. Com todas essas alterações, é indispensável analisar de que maneira a exigência de ficha limpa dialoga com as leis de proteção de dados pessoais e como vai afetar os protocolos dessas instituições sociais e de ensino. Como será feito esse controle? De que maneira essas informações serão selecionadas e organizadas? Quais os colaboradores responsáveis por esse manejo?
Não basta idealizarmos as leis se não as compreendermos e colocarmos em prática. A criminalização do bullying e do cyberbullying é um sinal de mudança, de evolução, de que comportamentos de abuso, discriminação, violência e desrespeito não serão tolerados, quer seja nas relações humanas seja nas robóticas, hoje e no futuro. •
*CEO e sócia-fundadora do escritório Peck Advogados. Com 46 livros publicados, é professora de Direito Digital da ESPM. Foi conselheira titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD).
Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital, em 31 de janeiro de 2024.
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