Artigo

Editorial – Escravos da oligarquia

Não adianta resistir, o Centrão ganha sempre e fica claro que Maradona não era brasileiro

Atenção, este não é Pelé. Foto: AFP Atenção, este não é Pelé. Foto: AFP
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Quando o Napoli de Maradona ganhou pela primeira vez o campeonato italiano, os torcedores afixaram na porta dos cemitérios placas, ou colaram manifestos, em que se lia destinada à invocação aos que no recinto dormiam o sono eterno: “Vocês não sabem o que perderam”. Haviam perdido os pontos altos de uma temporada de raro encanto, que mais de uma vez premiaria o time da casa com o scudetto.

Houve leitores que se queixaram pelo pouco espaço dedicado por CartaCapital ao Maradona. Para os nossos horários apertados, não havia tempo para reações imediatas, ainda assim Luiz Gonzaga Belluzzo não hesitou em compará-lo a Michelangelo. Mas, de saída, quero prestar a minha homenagem à jornalista Noelly Russo, excelente repórter, única representante do jornalismo esportivo nativo a contar, na Folha de domingo 29 de novembro, a história do golpe brasileiro praticado impunemente contra o nosso herói. Não houve um único profissional, ou uma única, que se dispusesse a registrar lamentáveis fatos, a envolverem a ­cúpula brasileira da Fifa contra a seleção argentina de Maradona no Mundial de 1994.

Estava Noelly nos Estados Unidos durante aquele torneio e no saguão do hotel em que se hospedava encontrou-se com outro hóspede, o próprio Maradona, recém-afastado do certame pela decisão imperial da Fifa, então entregue a João Havelange, e seus pupilos Joseph Blatter e Ricardo Teixeira, mais tarde incriminados e afastados por causa das bandidagens praticadas no poder. Uma foto de Maradona, de expressão desvairada, invadira o vídeo logo após a vitória da seleção argentina contra a Nigéria. Disse o gênio da bola a Noelly: “A Fifa e os brasileiros conseguiram me expulsar da Copa, a Fifa faz tudo para beneficiar a seleção canarinho”.

Aquele time argentino parecia realmente imbatível, no comando do seu ataque figurava um artilheiro implacável, Batistuta. Maradona já liquidara com as aspirações brasileiras e em 1990, quando, com um súbito, sorrateiro passe executado praticamente do grande círculo, alcançou o ponteiro-direito Caniggia, já postado nas imediações da grande área, e dali surgiu o gol fatal para eliminar a seleção do patético Lazaroni. Logo mais, na rodada seguinte, Maradona e Caniggia se incumbiriam de acabar com as pretensões da azzurra: o centro preciso de Maradona alcançou a cabeça do ponteiro-direito e o goleiro Zenga cuidou de colaborar ao se exibir em um frango de proporções históricas, para alegrar a torcida napolitana, unida contra a seleção do seu país. E onde estava Maradona? No lugar certo, e talvez até os falecidos se entusiasmassem. Ao cabo daquela partida, os platinos ganharam nos pênaltis. Craques como Baresi e Donadoni esmeraram-se para botar pela linha de fundo os seus tiros. Maradona e Caniggia não erraram.

A consciência política, não só o talento, glorifica o craque argentino

Não há depoimento de testemunhas da vida de Maradona que neguem a sua simpatia, a proximidade do povo, as corretas posições políticas, coerentes com quem tinha clara noção dos tormentos da América Latina, das desigualdades abissais, das prepotências de Tio Sam. Nestes dias, surgiu em cena um jovem italiano que já foi, no tempo de Maradona em Nápoles, gravemente enfermo. Havia um meio de curá-lo, graças a uma operação bastante cara. Maradona organizou um jogo beneficente para reunir o dinheiro necessário.

Há um antigo debate sobre quem seria melhor, se Pelé ou Maradona. No campo ideológico, não pode restar dúvida alguma. Se, como sustentava meu amigo Sócrates, Pelé levava a vantagem física de ser o atleta perfeito, é certo que o foi somente no gramado. Fora do retângulo verde, prestou-se a viver alegremente no país da casa-grande e da senzala, quando não fez propaganda a favor do pó de café e de remédios farmacêuticos voltados a garantir algum modesto desempenho sexual de cidadãos entrados em anos.

Maradona era de outra têmpera, um homem da sua época, com um grau de consciência e militância bem elevado. De todo modo, não houve um único, escasso profissional do extravasante jornalismo esportivo brasileiro, a levar os locutores a gritarem a sua paixão até ensurdecer os ouvintes e a esticar a palavra gol, carregada de ós até o horizonte. Seu herói é Neymar, inevitavelmente comparado a Cristiano Ronaldo e Messi, embora pouco o qualifique para tanto. Recentemente, por ocasião de um jogo do PSG contra um time de Istambul, imediatamente definida como a cidade mais bonita do mundo, Neymar machucou-se e foi substituído por um jogador negro capaz de fazer os dois tentos que ele não marcara. O locutor negou-se a declinar a origem do goleador, chamado Kean.

Talvez enganado pelo nome, quem transmitia deixou de esclarecer tratar-se de um italiano nato, tanto quanto Pelé é brasileiro.

Os jornalistas esportivos nativos, e as jornalistas, sofrem de falta absoluta de memória ou de uma tendência doentia de disfarçar a realidade. Os brasileiros aos quais Maradona se referia propiciaram momentos medievais para o futebol mundial. E seriíssimas objeções vale fazer não somente a respeito da vitória canarinho nos gramados estadunidenses, mas também ao resultado de 2002. Os mundiais de 1958 e 1962 não entram neste rol negativo. O Brasil podia ainda se apresentar como o país do futuro, bem representado por aqueles futebolistas. Em 1970, a vitória foi explorada pela ditadura e os nossos profissionais prestaram-se alegremente aos desfiles triunfais, sendo recebidos em Brasília pelo general Emílio Garrastazu Médici, o qual não deixou de tentar embaixadas na Praça dos Três Poderes.

Na volta da seleção de 70,Garrastazu Médici tentou executarembaixadas na Praça dos Três Poderes

Em relação a 2002, convém lembrar as arbitragens dos jogos que eliminaram Espanha, Portugal e, sobretudo, a Itália, entregue ao apito de um árbitro equatoriano chamado Byron Moreno, preso ao carregar debaixo da roupa, grudada diretamente ao próprio corpo, uma notável quantidade de heroína, no aeroporto de Miami, pouco tempo após a Copa.

Naquele Mundial disputado entre Coreia do Sul e Japão, sob a batuta de Joseph Blatter, Moreno conseguiu expulsar por simulação o jogador italiano Totti, ceifado sem piedade no meio da área. Foi aquele o torneio em que a Turquia subitamente tornou-se um adversário muito temível. Mas os nossos profissionais de ambos os sexos não perdem a esportiva. Conseguem entregar-se, de sol a sol e em vários canais, às suas tortuosas diatribes inconcludentes, às suas inúteis análises, aos seus vezos e tons de torcedores antes que perdigueiros da informação. Portam-se como se vivessem a hora do chope, em companhia de quem está do outro lado do vídeo, a se repetirem sem senso algum de vergonha. Há exceções, obviamente. Refiro-me, por exemplo, a Juca Kfouri e a José Trajano, figuras raras, contudo.

O que interessa é ganhar, não importa como. Nada é tão simbólico do pensamento nativo e a história do Brasil não me deixa mentir. Carregamos o legado da escravidão, recheado pela retórica dos bandeirantes desbravadores, caçadores de esmeraldas, de verdade empenhados em matar índios e escravos fugidos. Mas ostentamos também a ação de um exército de ocupação, disposto, sempre e sempre, ao golpe a bem dos ricos e contra os pobres, cada vez mais reduzidos a plebe rude e ignara.

Há brasileiros notáveis, destacados de todos os pontos de vista, de Machado de Assis a Guimarães Rosa, de Castro Alves a Euclides da Cunha, de Gilberto Freyre a Raymundo Faoro etc. etc. Falo de quem dissertou agudamente a respeito do Brasil. Tudo, entretanto, é vão, como a resistência impávida do Conselheiro. Neste exato instante, o resultado das eleições municipais consagra a enésima entrega do País às velhas oligarquias que se abrigam atrás do chamado Centrão.

Temos de nos desculpar pela crença ingênua manifestada na semana passada ao acreditar na união das chamadas esquerdas ou, se quiserem, das forças progressistas. Nada é mais forte do que a casa-grande em um país no qual também permanece de pé a senzala. Nunca deixamos de regressar a uma espécie de origem indestrutível, a nos negar qualquer contemporaneidade do mundo para afirmar peremptoriamente a nossa medievalidade.

Nesta parada só ganha mesmo o chamado Centrão, ao acolher a derradeira, lamentável versão do MDB, os senhores do DEM, os escombros do tucanato, os arrivistas à João Doria. Diante dos irredutíveis donos do poder todos perdem, de Bolsonaro à tentativa de união à esquerda. Já me advertia o fraternal amigo Raymundo Faoro a respeito de uma sina inescapável, a induzir a tibieza e a resignação daqueles que ainda estão habilitados a percebê-la.

Este meu texto insólito me impeliu na direção de Maradona e nem eu sei bem por quê. Talvez nas entranhas me toque, diante do pesar dos nossos jornalistas esportivos, a consideração de que o mestre da bola argentino jamais poderia ser brasileiro. No fundo, trata-se de uma consideração dolorosa a exibir diferenças acabrunhadoras. Os ditadores argentinos acabaram na cadeia, os nossos são até nomes de pontes e viadutos. Aliás, há um município na região metropolitana de Manaus que foi batizada de Presidente Figueiredo. O Brasil exportou os seus torturadores para o Chile e outros rincões latino-americanos, perfeitos intérpretes e seguidores pontuais da ferocidade dos capatazes da casa-grande. Estão em jogo tradições e vocações irrefreáveis. E nesta moldura torna-se impossível imaginar o futuro. A se considerar, porém, o presente, a repetir exaustivamente o passado, o momento não se afigura favorável a profetas otimistas.

Publicado na edição n.º 135 de CartaCapital, em 4 de dezembro de 2020.

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