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Distopia fardada

Comentários a um Delírio Militarista disseca o canhestro projeto de poder das Forças Armadas

Imagem: iStockphoto
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Quando foi lançado, no fim de maio, o Projeto de Nação – o Brasil em 2035, pelos Institutos Sagres, Federalista e General Villas Bôas, ligados a militares da reserva e ao governo Bolsonaro, poucos deram a necessária atenção. Uma dessas exceções foi o tarimbado professor Manuel Domingos Neto, doutor em História pela Universidade de Paris III. Um dos principais especialistas brasileiros em assuntos militares, ao se debruçar sobre as 93 páginas do documento coordenado pelo general Luiz Eduardo Rocha Paiva, o professor não teve dúvidas de que seria necessário comentar cada um dos 37 temas que o compõem, pois o documento traçava cenários prospectivos para 2035 a partir da hipótese de permanência da atual orientação governamental.

A coletânea Comentários a um Delírio Militarista, que acaba de ser lançada, reúne 41 autores mobilizados por Manuel Domingos. Professores, jornalistas e destacadas personalidades da vida pública brasileira dissecam e denunciam as proposições marcadamente neoliberais e ultraconservadoras, verdadeiros delírios da extrema-direita nacional.

No Brasil, os militares nunca se ativeram às funções tradicionais. Ao longo da República, implantaram diferentes ditaduras e pressionaram governos democraticamente eleitos. Enganaram-se aqueles que acreditaram que, após o fim do regime, em 1985, retrairiam seu ativismo político: as elaborações propositivas persistiram nas escolas militares. A presença de milhares de oficiais em postos civis revela o empenho em influir nos negócios públicos.

Engana-se, sobretudo, quem acredita que a presença desses militares no atual governo tenha ocorrido a partir de contingências aleatórias. Na apresentação do livro, Manuel Domingos relata que, em 2018, em conversa com o almirante da reserva Mário César Flores, foi surpreendido com a informação de que oficiais generais estavam organicamente envolvidos com a candidatura de Bolsonaro à Presidência da República.

Desses delírios militaristas, as proposições mais conhecidas talvez sejam aquelas que dizem respeito à cobrança de mensalidades em universidades públicas e à prática do ensino das escolas cívico-militares, comentadas nesta obra por João Carlos Salles e Catarina de Almeida Santos (respectivamente, em Universidade e Nação e A Militarização das Escolas Públicas). Mas estas estão longe de resumir as propostas antidemocráticas que trazem a marca do “Partido Verde-Oliva”, em seu projeto de se ­perpetuar no governo.

COMENTÁRIOS A UM DELÍRIO MILITARISTA. Manuel Domingos Neto (organizador). Gabinete de Leitura (372 págs., 60 reais)

O Projeto de Nação dos militares assenta-se no delírio de um Brasil como mero produtor de alimentos, comentado por Juliane Furno (A Volta do Liberalismo Primário-Exportador), Davi José Nardy Antunes e Marília Tunes Mazon (O Mito do Desenvolvimento pelo Agronegócio) e por João Pedro Stedile (A Agricultura num País para Todos/as). O documento desconhece a herança colonial e escravocrata, as terríveis desigualdades que proporcionou e que marcam a nossa sociedade, ignora a tragédia que foi a pandemia da Covid-19 e investe contra o Sistema Único de Saúde, defendendo “indenizações pelos serviços prestados” por usuários com renda familiar superior a três salários mínimos, como comentado por José Gomes Temporão e Walter Cintra.

Em 2035, ponto de chegada dessa utopia reacionária, o Brasil teria estabelecido uma espécie de governo de exceção denominado “Centro de Governança”, preparado para supervisionar, orientar e coordenar a estrutura de poder, proposições analisadas no livro por Piero Leirner e Guilherme Melo.

O documento dissecado em Comentários a um Delírio Militarista propõe muitas coisas para o Estado e a sociedade, mas em nada se refere à relação do Brasil com seus vizinhos ou a participação em blocos comerciais (Mercosul, BRICS). Fica nítido que os horizontes dos militares brasileiros não vão além do Ocidente, conclui Williams Gonçalves. Não há, por exemplo, preocupação com a preservação dos interesses do País diante da ação de potências estrangeiras, especialmente quando se sabe da dependência externa que experimentam em relação a armas e equipamentos, afirma Manuel Domingos.

Nesse projeto delirante, a única guerra em que os militares demonstram empenho é a híbrida, contra o próprio povo, encarando-o como “subversivo”.  O projeto militarista pretende vigiar atentamente os brasileiros, analisam Priscila Carlos Brandão e Ana Penido (Involução e Deturpação da Inteligência Estratégica) e Marcio Pochmann (Rebeliões da Nova Tecnocracia Antidesenvolvimentista).

Como a coletânea demonstra, o Projeto de Nação proposto ignora as dificuldades dos trabalhadores, bem como das mulheres que constituem a maioria da população. Os delírios militaristas pressupõem a suspensão das liberdades e uma curiosa “neutralidade” na inserção do ­País no cenário internacional.  Razão pela qual, em sua análise, Gilberto ­Maringoni (Geleia Geral) pergunta: as Forças Armadas brasileiras, hoje na prática subordinadas ao Comando Militar Sul dos Estados Unidos, romperão este acordo para se tornarem autônomas? Em 2035, se o Brasil trilhar por este caminho proposto para a mineração, a Amazônia e o meio ambiente, vai se materializar um futuro “triste e impiedoso”, assinala Cristina Serra, enquanto Roberto Amaral adverte para a fragmentação da comunidade nacional. O projeto analisado neste livro revela a contaminação da tecnocracia brasileira pelas ideias neoliberais. Essa contaminação atingiu os militares, analisa Marcio Pochmann. Os valores e conceitos presentes no Projeto de Nação dos militares são examinados por Eduardo Costa Pinto, João Quartim de Moraes, Rodrigo Lentz e Eliézer Rizzo de Oliveira.

No momento em que Bolsonaro concorre à reeleição, Comentários a um Delírio Militarista coloca-se como uma obra essencial para quem quer entender o que não é dito, mas gestado e sorrateiramente operado. Nestas eleições, e para além delas, estará em disputa não só o futuro que teremos, mas se teremos futuro. •


*Jornalista, mestre e doutora em Comunicação. Professora da UFMG.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Distopia fardada “

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