Artigo

Desespero e ruínas: a dura realidade de uma família sob as bombas de Gaza

“Estamos desenterrando pessoas com nossas mãos”, me disse Samira. Os corpos se enfileiram, bebês morrem na UTI, famílias inteiras foram soterradas

Um homem carrega o corpo de um parente morto num ataque israelense a Rafah, no sul da Faixa de Gaza, no hospital al-Najjar, em 1º de dezembro de 2023. Foto: MOHAMMED ABED / AFP
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“A Faixa de Gaza está sem luz, sem água e foram destruídas muitas casas. Quando uma família perde sua moradia, os membros restantes buscam refúgio com seus parentes. O meu prédio, por exemplo, tem três andares, abrigando três famílias, totalizando cerca de 20 pessoas. Atualmente, porém, mais de 60 pessoas estão alojadas dentro desta mesma estrutura.

Antes, eles avisavam [sobre os bombardeios]: ‘Vocês tem dez minutos, cinco minutos para saírem de casa’. Hoje, não avisam nada. De repente, boom, e já foi embora o edifício. Morrem dezenas. Outros não morrem, mas ficam sob os escombros. Algum recebem água, mas infelizmente, não temos como resgatá-los e eles ficam dois, três dias ali; e morrem sozinhos. Ou explodem.

Os hospitais não têm material pra manter se funcionando direito. Estamos sem saber o que o futuro nos reserva. No momento, eu estou em minha casa com minha família. E, graças a Deus, por enquanto, nenhum de nós foi ferido. Houve alguns bombardeios perto, mas graças a Deus ninguém está ferido. Mas tudo pode mudar em um minuto… A água está quase acabando, pois foi cortada por Israel. A água também foi cortada.  Não sei se seremos bombardeados dentro de nossas próprias casas.. Nem imagino o que pode acontecer daqui a pouco.”

Há vida em Gaza? Nos últimos meses, estive em contato com uma família de dentro da Faixa. Uma senhora, seus filhos e netos, enfrentando a escassez de luz e água, em uma casa de janelas quebradas. Esta é a imagem relatada por Samira, a matriarca. Com o passar dos dias, nossas comunicações se tornaram mais escassas, assim como os suprimentos de água e comida. Só cresce o número de mortes aumentou, de centenas para milhares e até dezenas de milhares. Nossa relação é entrecortada por dias sem comunicação. O WhatsApp me notifica quando ela está viva. A ausência me deixa sem resposta. O silêncio, como um imenso descampado, é rompido pelo rufar das bombas ou de pedidos desesperados de ajuda para retirada da filha com os netos.

O relato acima é do dia 13 de outubro. De lá para cá, felizmente, Samira segue viva. A filha tenta sair com as crianças, em vão. “Não estão habilitados” foi a resposta. “Falta documentos”, “não são binacionais”. Pergunto-me quais vidas podem ser vividas e quais não?

No dia 7 de outubro de 2023, o Hamas iniciou a operação Tempestade de Al-Aqsa, uma resposta à escalada de agressões em Jerusalém e nas cidades da Cisjordânia. Posteriormente, membros do Hamas cruzaram o bloqueio de Gaza, tomando regiões e fazendo reféns no entorno da pequena porção de terras. Parte da ação envolveu o lançamento de foguetes direcionados à capital israelense.

Gaza é uma panela de pressão que iria implodir, mas está sendo explodida

Nos dias que se seguiram, uma enorme ofensiva foi armada contra a Faixa de Gaza, especialmente contra a cidade de Gaza, centro político e com a maior densidade populacional da região. Também se estabeleceu uma ofensiva aérea. Centenas de quilos de mísseis foram direcionados a Gaza; porta-aviões partiram dos Estados Unidos em apoio a Israel, e a população israelense foi convocada para uma suposta “guerra”.

Como espectador de uma tragédia, o mundo assistiu a centenas de milhares de mísseis caírem sobre Gaza – edifícios, casas, escolas da ONU, hospitais, ambulâncias. Sob o pretexto de “guerra antiterrorismo”, o Estado israelense fez uma de suas maiores ofensivas contra a população palestina, gerando o número aproximado de 22 mil mortos, a maioria crianças e mulheres.

É preciso compreender a conjuntura atual em Gaza. Da população atual, muitos são considerados “refugiados internos” ou “deslocados internos”. É importante destacar também a vulnerabilidade e a pobreza enfrentadas por uma grande parte da população, que, devido ao bloqueio, depende de ajuda humanitária para sobreviver.

Milhares de pessoas foram deslocadas dentro de seu próprio território no ano de 1948, com a instauração do Estado de Israel e a expulsão de cerca de 850 mil palestinos do território, que hoje somam um contingente de 5,9 milhões de refugiados segundo a URWA, agência especial da ONU para refugiados palestinos. A população atual de Gaza faz parte destes deslocados e vem crescendo a cada ano, somando pouco mais de 2 milhões de pessoas em um território de 365 km², constituindo uma das áreas mais densamente povoadas do mundo, bem como uma “prisão a céu aberto”, desde seu bloqueio em 2006.

Um prisioneiro palestino abraça sua mãe após ser libertado de uma prisão israelense em troca de reféns israelenses libertados pelo Hamas da Faixa de Gaza, em Ramallah, na Cisjordânia ocupada, em 26 de novembro de 2023. Foto: FADEL SENNA / AFP

Gaza é uma panela de pressão que iria implodir, mas está sendo explodida. Esta explosão coroa um longo processo de limpeza étnica, iniciado ainda nas primeiras décadas do século XX através da ocupação da Palestina pelo projeto sionista moderno. O projeto de colonialismo de assentamento previa a expulsão da população autóctone para então consumar um estado sionista na região. Para isso, o modelo de ocupação sucessivamente expropriou, expulsou e exterminou palestinos. O massacre em Gaza é apenas mais uma etapa deste projeto.

Segundo o dicionário Priberam, genocídio é “a destruição metódica de um grupo étnico ou religioso pela exterminação de seus indivíduos” ou “exterminação de uma comunidade de indivíduos em pouco tempo”.

Ou seja, o extermínio deliberado de pessoas em pouco tempo. O que seria a situação em Gaza agora senão um genocídio? As convenções internacionais, especialmente a Convenção de Genebra, garantem tratamento digno e com humanidade e condenam transferências forçadas em massa ou individuais.

Todavia, enquanto isso, os palestinos da cidade de Gaza são mais uma vez transladados, deslocados, “re-refugiados”. O translado da população local, como sugeriu Illan Pappé em 2006, é um processo de limpeza étnica. Ou seja, a retirada sistemática de uma população de um território, bem como prisões arbitrárias, mortes intencionais e perseguição política e religiosa de um grupo em virtude de seu pertencimento étnico.

“Estamos desenterrando pessoas com nossas mãos”, me disse Samira. Os corpos se enfileiram, bebês morrem na UTI, famílias inteiras foram soterradas. A dificuldade do próprio levantamento de dados precisos no contexto recente deve ser encarada como objeto de silenciamento.

Em um mês desde o início desta etapa de incursões, a fronteira de evacuação de pessoas aberta entre Faixa de Gaza e Egito, Rafah, foi atacada por mísseis israelenses, bem como aberta e fechada consecutivamente pelo governo egípcio. Dali apenas estrangeiros e binacionais têm saído, poucos palestinos conseguem passagem.

Uma “trégua humanitária” foi realizada após dois meses de bombardeio à Gaza. Durante este período o governo israelense realizou troca de reféns palestinos com reféns israelenses que estavam sob detenção do Hamas. Todavia, durante a suposta trégua, agentes israelenses seguiram atacando bairros na Cisjordânia e realizando prisões arbitrárias. Os relatos locais em Gaza continuam sendo de terror e falta de perspectiva.

Mesmo durante a suposta trégua, pessoas palestinas seguem sendo presas e atacadas por agentes coloniais israelenses. Além do contexto bélico, há ainda o contexto climático. O inverno na Palestina é rigoroso e as pessoas desabrigadas, que tiveram suas casas bombardeadas, estão à mercê do clima desfavorável, bem como sem acesso a alimentos, água e recursos básicos.

É importante dizer que uma trégua em meio a um massacre é inconcebível. Há que se cessar fogo, parar o genocídio, e não o pausar por alguns dias para uma simples evacuação de reféns. A própria ideia de trégua não é humanitária. É necessário o fim da limpeza étnica dos palestinos. O mundo elege aqueles a quem enlutar e os que serão esquecidos, no escuro, soterrados e silenciados pela terra. Pois os mortos, eles não têm fome, nem sede.

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