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Cronômetro perverso

Uma vítima de estupro não pode ser obrigada a manter a gestação por ter acesso ao serviço de aborto legal tardiamente

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Imagem: iStockphoto
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No Brasil, não há limite de tempo gestacional ao aborto induzido nos três casos permitidos por lei: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mãe e anencefalia fetal. Embora pouco frequente, o procedimento nas fases mais avançadas da gravidez afeta de maneira desproporcional as mulheres e meninas em situação de maior vulnerabilidade social. A dificuldade em reconhecer os sinais da gravidez entre as crianças e adolescentes, o desconhecimento sobre as previsões legais do aborto, a tardia descoberta de diagnósticos de malformações, geralmente após a primeira metade da gestação, e as barreiras geográficas – apenas 3,6% dos municípios contam com pelo menos um serviço de aborto legal – constituem as principais razões para a procura pelo aborto após a 22ª semana de gravidez.

A Organização Mundial da Saúde recomenda a indução de assistolia fetal nos casos de aborto induzido a partir das 20 semanas de gravidez. No Brasil, a quase totalidade desses casos acontece abaixo de 25 semanas e não há relatos de casos próximos do termo. O procedimento consiste na utilização de medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto, visando retirá-lo do útero sem sinais vitais. Dessa forma, previne-se o desgaste emocional e psicológico das pacientes, dos acompanhantes e da equipe assistente. Além disso, estudos observacionais sugerem que, no tratamento medicamentoso, há diminuição do tempo entre o início da indução do aborto até a expulsão.

Recentemente, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução 2378/2024, proibindo a indução de assistolia fetal nos casos de gravidez decorrente de estupro acima de 22 semanas. Essa decisão foi suspensa liminarmente pelo ministro Alexandre de ­Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Qualquer medida disciplinar ou administrativa dela decorrente também foi proibida. Em breve, o julgamento irá para o plenário físico da Corte. Na prática, a decisão do CFM impede o aborto em estágios mais avançados da gestação, uma vez que a IAF é a única ação terapêutica que evita os danos da prematuridade. A imposição da gravidez, principalmente entre as vítimas de estupro, pode configurar tortura, de acordo com os tratados internacionais de direitos humanos.

Em defesa da Resolução do CFM, ­alguns alegam que a IAF é dolorosa para o feto. Em 2022, o Royal College of ­Obstetricians and Gynaecologists, do Reino Unido, apontou, porém, evidências de que a possibilidade de percepção de dor antes das 28 semanas de gestação é improvável. As atuais revisões da literatura médica indicam, inclusive, ser desnecessária a prática rotineira de administrar analgesia fetal em abortamentos ou mesmo em procedimentos obstétricos, como partos.

O Código Penal, é importante ressaltar, não exige qualquer documento para a realização do aborto legal em caso de gravidez decorrente de estupro, a não ser o consentimento da mulher. Assim, a vítima de violência sexual não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Os profissionais da saúde têm o dever de orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado esse direito. A palavra da mulher deve ser recebida como presunção de veracidade. “Não cabe ao profissional de saúde duvidar da palavra da vítima, o que agravaria ainda mais as consequências da violência sofrida”, orienta a norma técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes, do Ministério da Saúde.

O médico e os demais profissionais de saúde não devem temer consequências jurídicas, caso se revele na sequência que a gravidez não foi resultado de violência sexual. Mas, se posteriormente for comprovada a inverdade da alegação da mulher, somente ela responderá criminalmente. Tal proteção está prevista no Código Penal, artigo 20, § 1º, a afirmar que “é isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima”. Para justificar o aborto legal no âmbito do SUS, a Portaria do Ministério da Saúde nº 1.508, de 1º de setembro de 2005, orienta que sejam preenchidos e anexados os seguintes documentos ao prontuário: relato circunstanciado do evento, parecer técnico, termo de aprovação do procedimento, termo de responsabilidade, termo de consentimento livre e esclarecido.

Recomendada pela Organização Mundial da Saúde, a indução de assistolia fetal não causa sofrimento ao feto, indicam as evidências científicas

Em 2012, o STF declarou a constitucionalidade da antecipação terapêutica do parto nos casos de gestação de feto anencéfalo. Em situações análogas, de malformação fetal que impossibilite a vida fora do útero, também é possível obter autorização judicial para interrupção da gravidez. Para isso se faz necessário uma carta da gestante solicitando o procedimento à autoridade judicial, acompanhada de exame de ultrassonografia, relatório do médico esclarecendo que o feto não terá sobrevida ao nascer e publicação científica sobre a malformação fetal.

Acredita-se, no Brasil, que a mulher exposta a “risco à vida” consegue com maior facilidade exercer o seu direito ao aborto do que nos casos de gravidez decorrente de estupro. Na realidade, entretanto, na ausência de normas claras a esse respeito, há grandes limitações à aplicação da lei nesses casos. Para o médico obstetra, preocupado constantemente em proteger o feto, é extremamente difícil decidir pela necessidade de sua morte. Mas não se pode esquecer de que proteger a vida da mulher deve ser a sua preocupação primária. Os dados de mortalidade materna no Brasil demonstram que, aproximadamente, 30% das mortes maternas ocorrem por causas indiretas. Muitas vezes, o atraso na interrupção da gravidez coloca a mulher em risco iminente de morte e, por vezes, os recém-nascidos morrem ou sobrevivem com sequelas graves, devido à prematuridade extrema.

Por fim, é importante deixar claro que o art. 154 do Código Penal afirma ser crime “revelar a alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”. Já o Código de Ética Médica proíbe, no art. 73, “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão”, permanecendo essa proibição mesmo que o fato seja de conhecimento público ou a paciente tenha falecido. Não cabe ao médico julgar a paciente, e sim ter atitude respeitosa e de acolhimento, buscando entender seu sofrimento e prestar a assistência adequada. •


*Obstetra, diretor do Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), serviço de referência ao atendimento ao aborto legal, e professor da Universidade de Pernambuco (UPE).

Publicado na edição n° 1316 de CartaCapital, em 26 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cronômetro perverso’

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