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Covid-19: é hora daqueles que têm mais pagarem mais

Mais de 513.000 pessoas fazem parte do clube dos super milionários – aqueles com um patrimônio de mais de 30 milhões de dólares

Desigualdade
Custos da pandemia já estão sendo suportados de forma desproporcional pelos mais pobres e mais vulneráveis. Foto: iStock Custos da pandemia já estão sendo suportados de forma desproporcional pelos mais pobres e mais vulneráveis. Foto: iStock
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Por Ricardo Martner*

 “Nós, milionários e bilionários, estamos hoje pedindo aos nossos governos que aumentem os impostos sobre nós. Imediatamente. Substancialmente. Permanentemente”. Com estas palavras, 83 pessoas super ricas assinaram uma carta em julho passado que tem ecoado no mundo inteiro, na qual pediam um aumento de impostos para contribuir com os gastos ligados à recuperação econômica pós pandemia de Covid-19.

Naturalmente, os signatários são apenas uma pequena minoria. Mais de 513.000 pessoas fazem parte do clube dos super milionários – aqueles com um patrimônio de mais de 30 milhões de dólares. Mas se a petição teve tal impacto é porque a pandemia, ao expor as graves deficiências nos serviços públicos resultantes de uma década de cortes, oferece uma oportunidade urgente.

Na América Latina, as elites agem como se o debate não dissesse respeito aos seus países. De fato, entre os signatários da carta, há apenas um nome latino-americano – e não é brasileiro. Parece que esquecem que a América Latina é a região mais afetada pela pandemia, tanto do ponto de vista humano quanto econômico, uma vez que se espera que a atividade econômica se contraia em 9,1% em 2020. As consequências serão catastróficas, particularmente para todos aqueles que dependem da economia informal – ou seja, 150 milhões de pessoas, mais da metade da população ativa. Até 52 milhões de pessoas podem cair na pobreza na região mais desigual do mundo.

Tanto na Europa como nos Estados Unidos, programas de centenas de bilhões de dólares foram implementados para tentar manter o emprego e revitalizar a economia. Será que podemos esperar o mesmo na América Latina, onde o déficit de serviços básicos já era crônico antes da pandemia, com mais de um terço do estoque habitacional sem saneamento básico e a mesma proporção sem acesso a serviços de saúde devido à falta de recursos econômicos? Como podemos fazer isso quando a região perderá US$113,4 bilhões em receita tributária este ano, o que equivale a 59% dos gastos em saúde pública?

Mesmo antes da pandemia, os recursos eram extremamente limitados, com uma carga tributária de 23,1% do PIB para a região como um todo, 11 pontos abaixo da média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e com uma estrutura tributária concentrada em impostos sobre bens e serviços, que são por natureza desiguais. A situação atual exige mudanças radicais, não só para que se colete mais, mas também para tornar o sistema mais progressivo. Esta crise não pode ser paga pelos de sempre.

Isto é ainda mais urgente porque na América Latina, como no resto do mundo, os super ricos estão se saindo bem. A Oxfam mostrou em um estudo recente que a fortuna das 73  pessoas mais ricas da América Latina aumentou em 48,2 bilhões de dólares entre o início da pandemia e julho. Ao mesmo tempo, a região tem visto um novo bilionário emergir, em média, a cada duas semanas. O valor líquido combinado dos bilionários no Brasil, aumentou de 123,1 bilhões de dólares para US$ 157,1 bilhões de dólares.

A proposta de fazer com que os super ricos contribuam mais surgiu fortemente em vários países do mundo – apoiada pelo próprio Fundo Monetário Internacional – provocando imediatamente a rejeição das elites: um imposto sobre a riqueza, seja temporária ou permanente, faria com que os mais ricos (e suas empresas) deixassem de investir no país. Entretanto, não é isto que as experiências no resto do mundo sugerem. Sem ir longe demais, o exemplo da Colômbia, um dos únicos países, junto com Argentina e Uruguai, a ter tal imposto, mostra que, apesar da evasão fiscal, o sistema tributário é mais progressivo.

Segundo a Oxfam, se este ano fosse aplicado um imposto sobre o patrimônio líquido entre 2% e 3,5% sobre aqueles com mais de um milhão de dólares, os países latino-americanos poderiam arrecadar até 14,2 bilhões de dólares, o que é 50 vezes o que poderia ser cobrado este ano dos bilionários da região com o atual desenho do imposto sobre o patrimônio líquido.

Simbólica, eficaz e necessária, esta medida seria na verdade apenas parte de uma reforma muito mais profunda que nossos sistemas de redistribuição exigem. Outra prioridade deveria ser, ao menos, a introdução regional ou unilateral de impostos temporários sobre os gigantes digitais, que têm sido os grandes vencedores da pandemia. Esta é uma das cinco principais recomendações que o ICRICT, a Comissão Independente pela Reforma da Taxação Corporativa Internacional,  da qual sou membro, faz para permitir aos Estados lidar com a explosão de gastos causada pela crise sanitária.

Em geral, é uma questão de resistir à pressão para reduzir os impostos corporativos e, ao contrário, rever seu sistema de tributação para que não seja mais possível para às empresas relatar lucros registrados em paraísos fiscais e quase nada em países com impostos corporativos mais altos. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), o custo regional da evasão e da elisão fiscal atingiu 6,3% do PIB em 2017, o equivalente a 335 bilhões de dólares.

Os custos da pandemia já estão sendo suportados de forma desproporcional pelos mais pobres e mais vulneráveis. A carga econômica dos pacotes de resgate não deve cair também sobre eles. Chegou a hora de quem tem mais a pagar mais.

* Ricardo Martner é membro da Comissão Independente pela Reforma da Taxação Corporativa Internacional (ICRICT). Ele atuou como chefe da Unidade de Assuntos Fiscais da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL)

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